Um dos grandes pecados que envolvem a literatura encontra-se na confusão entre a narrativa e o escritor. Muitas vezes aquele que escreve acaba sendo confundido com o texto publicado.
Explico. Ezra Pound, Louis-Ferdinand Céline, Pierre Drieu de La Rochelle, entre outros, eram fascistas. No entanto, escreveram romances e estudos teóricos de importância fundamental para a literatura. Recusar, ou melhor, cancelar esses trabalhos significa ignorar que o/a escritor/a é, em primeira instância, um ser humano – portanto, passível de escolhas éticas e morais. Decretar juízo de valor sobre a história pessoal do/a sujeito/a constitui um rebaixamento inapropriado, pois quer medir a qualidade literária com a régua do politicamente correto. E isso não é justo – nem com aquele que escreve, nem com o texto produzido.
William Burroughs matou a esposa acidentalmente – o filósofo Louis Althusser também fez isso; Ernest Hemingway (Prêmio Nobel de Literatura, 1954) e Charles Bukowski, além de alcoólatras, eram machistas; Vidiadhar Surajprasad Naipaul (Prêmio Nobel de Literatura, 2001) era uma pessoa detestável sob diversos aspectos; Dostoiévski, além de alcoólatra, tinha problemas com jogos de cartas e roleta. Monteiro Lobato era racista; O Marquês de Sade cultivava com esmero incontáveis desvios sexuais; Philip Kindred Dick tinha esquizofrenia; James Joyce costumava pedir dinheiro emprestado e nunca devolvia; Anne Sexton, Sylvia Plath, Virgínia Woolf e Alejandra Pizarnik eram maníaco-depressivas e se suicidaram; a inimizade entre os irmãos Heinrich e Thomas Mann (Prêmio Nobel de Literatura, 1929), Lawrence e Gerald Durrell ultrapassava as fronteiras do bom comportamento; Jack Kerouac era viciado em anfetaminas.
A lista dos/as escritores/as defeituosos se prolonga na direção do infinito. Mas nenhum desses desvios de conduta desmerece o trabalho literário. Deixar de ler um livro por qualquer motivo que não seja as deficiências do próprio livro constitui um sacrilégio e uma prova cabal de miséria intelectual.
As áreas que podem determinar a qualidade de um texto são, em última instância, a crítica literária e o gosto pessoal. Ao lado dos critérios técnicos (que podem estabelecer um grau de avaliação para os inúmeros elementos que compõem a obra), as preferências do leitor ajudam a determinar se uma narrativa deve ou não integrar o cânone. Com a prerrogativa de que esses critérios podem ser alterados na semana seguinte.
Trocando em miúdos: os instrumentos de análise são subjetivos e podem ser contestados a qualquer momento. O gosto e as listas precisam ser mutáveis (conforme a experiencia vai sendo produzida, os parâmetros estéticos podem evoluir ou regredir). A literatura não precisa estabelecer algum tipo de ordem definitiva (melhor ou pior) ou garantir que o leitor não terá decepções; o que ela almeja é o constante diálogo entre o/s livro/s e o leitor. Disso deve resultar a fruição do texto. Elementos externos e a vida pessoal do escritor não representam um acréscimo ou um demérito na produção literária.
O leitor se apaixona pelo livro – o
escritor é apenas um instrumento dessa ação.
Essa abordagem - ligação entre escritor e texto - sempre esteve presente nos meus questionamentos. Seu texto confirma e renova o norte como sigo - ao cotejar: vida própria x elaboração texto literário... Aplausos Raul - por conseguir tocar em algo profundo para os que escrevem (vida pessoal x texto escrito!) Abraços
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