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quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

CORTEJO EM ABRIL


A literatura brasileira de ficção costuma tratar a história nacional com triunfalismo. São os grandes eventos ou os grandes personagens que monopolizam os romances, as novelas, os contos. Essas narrativas meta−ficcionais (distintivas por diluírem as fronteiras entre História e ficção, seguindo a trilha dos textos biográficos) identificam mecanismos de compensação: a história presente sendo substituída por episódios ilustres, ilustrativos, ilustrados. Em lugar de trabalhar com o real, com a vida pulsante do dia ­a dia, denunciando os descompassos de um país trôpego e reacionário, enveredam por inúmeros e incontáveis jogos literários, exaurindo toda a substância, toda a carne e sangue que as envolvem.

A História e a história da literatura brasileira nem sempre são dignas de orgulho. Na calada das noites tropicais, aquelas mesmas que jamais se calam no trânsito frenético entre a casa grande e a senzala, os bastardos são instrumentalizados a confirmar o ordenamento vigente. Diante da miscigenação (elogiada em público e considerada espúria na vida privada), raras vezes o trivial aparece diante dos holofotes literários.

Na contracorrente, quase que a desafiar a estrutura social, um fragmento do Brasil contemporâneo está retratado ficcionalmente nas 25 páginas do conto Cortejo em Abril , escrito por Zulmira Ribeiro Tavares.

Antes de atender um cliente, na manhã daquela segunda−feira, 22 de abril, feriado nacional, o Consertador de Tudo caminha pelo Parque do Ibirapuera. Ao saber pelo rádio que o cortejo com o corpo de Tancredo Neves iria passar por ali, ele decide ver o translado e, de certa forma, se despedir daquele homem engraçado, baixinho, meio corcunda, barrigudo, (...) olheiras fundas, careca.

O Consertador de Tudo é um homem magro, casado, fumante, de idade indefinida, talvez 35 ou 40 anos, embora possa ter entre 45 e 50, talvez mais. Ninguém sabe ao certo. Tem a habilidade de fazer as coisas quebradas funcionarem de novo.

Enquanto caminha pelo parque, para poder ver o cortejo, para poder dar adeus ao morto, o Consertador de Tudo vê que No chão, sobre a grama, um casal se amassava de uma maneira particular, como se fossem duas almofadas viventes, dois bonecos de ar e de plástico vendo qual estourava o outro primeiro. É uma visão inesperada, excitante, contraponto imediato ao enterro que está sendo conduzido pelas ruas da cidade. É a vida respondendo à morte que não se importa com ela − enquanto o sangue circular pelo corpo, o prazer circulará entre as pessoas.

O Consertador de Tudo retoma o seu destino, caminhando apressado na direção do obelisco aos Mortos de 32. Uma multidão na calçada, espera pelo cortejo. Consegue abrir caminho. Consegue um lugar para poder ver o carro fúnebre. Coberto pela bandeira nacional, o veículo passa lentamente e se perde na distância, como se fosse uma sombra que se desloca de acordo com o movimento do sol. O povo se dispersa naturalmente. O Consertador de Tudo, de repente se vê quase sozinho, a olhar a imensidão da avenida. Uma mulher puxa conversa, a lembrar as qualidades do morto, a informar que o martírio ainda não havia terminado: antes do enterro em Juiz de Fora, lá na imensidão das Minas Gerais, ainda haveria de passar/passear em Brasília.

Depois de se despedir da mulher, o Consertador de Tudo foi procurar pelo edifício onde alguém o havia chamado. Encontrou o prédio muito bonito e muito moderno; diferente dos outros; quero dizer, diferente de uns, parecido com outros. O Arquiteto o recebeu com impaciência. Sua angústia está relacionada com a máquina de escrever. Só consegue escrever seus trabalhos naquela máquina. Diz que já tentou o Serviço Autorizado – que não consegue eliminar o defeito. Chamou o Consertador de Tudo quase em desespero, não sabe mais o que fazer.

O Consertador de Tudo começou com segurança a desmontar a maquina, envolto numa nuvem de fumaça de cigarro. Enquanto ele trabalha, o Arquiteto olha pela janela, talvez procurando por vestígios do cortejo que já passou. Depois de algum tempo, o som da campainha quebrou a inércia. O Arquiteto vai atender, é um vizinho, os dois ficam conversando, um diálogo tenso, insinuações sobre os preconceitos que estruturam a sociedade brasileira respingando por todos os lados.

O Consertador de Tudo continuou a fazer o seu serviço, a ajustar peças. Quando o Arquiteto voltou, eles falam um pouco sobre a máquina, sobre Tancredo, sobre mulheres. A conversa, entremeando o trabalho, dissolve as camadas de indiferença entre o empregado e o patrão. O Tirante da Entrelinha, um objeto minúsculo, insignificante, foi recolocado na máquina sem esforço.

Trabalho findo, café. A conversa se estende. O Arquiteto informando um pouco sobre o morto, sobre a história pátria. E na certa àquela mesma hora em que o Arquiteto e o consertador de Tudo tomavam seu café forte, os dois de pé, comentando o caso (pois como pensar e falar muito tempo de outra coisa qualquer), no Brasil inteiro também se murmurava, bisbilhotava, recordava.

Terminado o café, hora de ir embora. No corredor, o Consertador de Tudo acende um cigarro e pede ao Arquiteto que o recomende aos amigos, serviço sempre é bem−vindo.

O Consertador de Tudo, enquanto caminha para fora do edifício, para a imensidão das ruas, sente falta de ar: sabia que perdia a respiração todos os dias um pouco, que principiava a perdê−la mais naquele dia sobre a grama do parque, com o verde por baixo dos pés e o amarelo do sol por cima, cada vez mais ia ficando sem ar, ele o ia perdendo com as coisas que se perdiam lhe passando diante dos olhos escancarados, uma atrás da outra, vagarosas – como passa um cortejo.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A ÁRVORE DA VIDA


A associação entre o "talento" de Terrence Frederick Malick (diretor de The thin red line, 1998) e o dinheiro do marido da Angelina Jolie na produção e direção do filme A árvore da vida (The tree of life, Dir. Terrence Malick, 2011) resultou em duas longas horas e quinze intermináveis minutos de verniz pseudo−inteligente, simulacro do filme de "griffe", aquele que parece fornecer cultura, mas que − nestes tempos em que o capitalismo predatório determina as regras do mercado de consumo − está ansioso por ver os números fornecidos pelas bilheterias.

A árvore da vida, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2011, não é um filme ruim – é, apenas, pretensioso. E beira, perigosamente, o tédio. Em alguns momentos parece teatro filmado − que é o outro nome do cinema artificial. A ambição de construir um grande poema visual ou de captar a essência e a fragilidade da vida não se efetiva. Fica no arremedo. E a participação decorativa de atores "estelares" como Brad Pitt, Sean Penn e Jessica Chastain não melhora o panorama. A condução dramática da película fica por conta dos meninos Hunter McCracken, Laramie Eppler e Tye Sheridan – nomes quase escondidos na ficha técnica.

As diversas estruturas alegóricas – lançadas na tela através de imagens da natureza (vulcões em erupção, ondas gigantes, por−do−sol na praia) – não conseguem extrair algo mais significativo do que o maneirismo proposto pela montagem: planos abertos e lentos, travellings em quantidade, roteiro fragmentado, música elegíaca e narrativa sussurrada. Os elementos acessórios foram promovidos a protagonistas, substituindo inexoravelmente a ausência (ou insuficiências) do enredo.

Todo esse esforço se concentra em quase nenhuma ação dramática. A história dos três irmãos que precisam sobreviver a um pai autoritário e distante, e a uma mãe submissa, se dilui em divagações quase banais. E que são nitidamente religiosas. Ou que tentam expressar os desígnios divinos. A voz da mãe, no início do filme, se referindo ao filho morto aos 19 anos, não é gratuita: Quem ama o caminho da graça jamais têm um fim triste. Filosofia barata ou, como se diz no dia-a-dia, conversa pra boi dormir

A parte mais significativa da narrativa se concentra na passagem da infância para a adolescência. Nesse momento, os meninos sentem prazer genuíno quando o pai vai viajar. O elemento repressor desaparece de cena e a felicidade contagia os filhos e a mãe. O paraíso não precisa ser muito sofisticado.

Também é nesse período que o irmão mais velho sente as primeiras agulhadas do ciúme. As habilidades do irmão do meio (que sabe tocar violão, gosta de desenhar, é mais corajoso) servem de alimento para a raiva – que vai germinando dentro do menino. O instinto do mal faz com que traia a confiança que o irmão do meio deposita nele. E isso torna tudo mais confuso porque o que ele, o irmão mais velho, ambiciona é ser amado pelo pai. Esse mesmo pai que se mostra incapaz de controlar as próprias idiossincrasias.

Em uma das refeições familiares, o pai pede aos filhos que, na próxima meia hora, somente falem o que for realmente importante. Alguns minutos depois, o irmão do meio, diante de um pai que não para de dizer bobagens, pronuncia: "Be quiet" (cale−se). A tempestade se instala através da cólera, da violência.

São as lembranças de um tempo passado que reconstituem a relação afetiva entre os dois irmãos – o irmão menor praticamente não tem voz, é apenas uma sombra. Essas histórias de um tempo em que a amizade e a perversidade se confundiam é que indicam as possibilidades de rever, reaver, a memória do irmão do meio – são elas que permitem reavaliar a perda e o que se perdeu com ela.






segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

MINHAS TARDES COM MARGHERITTE

Somente os ignorantes são felizes. Os livros não mudam as pessoas. Essas duas afirmações costumam ser contestadas pelo inconsciente humano. O conceito de civilização inicia com a crença de que o conhecimento é transformador, e que pode mudar a vida das pessoas. Para melhor.

O filme Minhas tardes com Margheritte (Dir. Jean Becker, 2010), baseado no romance La tête en friche, de Marie−Sabine Roger, se predispõe a contar uma história de mutação intelectual. Dessas que – transitando entre o símbolo e a ingenuidade – servem de exemplo pedagógico.

O encontro casual, em uma praça, entre Germain Chazes (interpretado por Gérard Depardieu) e Margheritte van der Veld (interpretada pela excelente Gisèle Casadesus) parece cena de teatro grotesco. A velhinha frágil e o ogro. Primeiro, eles falam sobre os pombos − Germain conhece a todos, deu nome a cada um deles. Depois, quando a descontração invade a conversa, ela lê um trecho do livro que carrega. Germain, que teve dificuldades de aprendizado na infância, se encanta com a história que ouve. Algumas horas depois, a voz de Margheritte ainda ecoa em sua mente. Tanto que ele sonha com os ratos. Quando, no encontro seguinte, eles concordam em continuar a leitura conjunta (ou seja, ela ler e ele escutar) de A peste, de Albert Camus, a sintonia se estabelece elegantemente, como se fosse um ato natural. Não o é. Germain ouve a voz que lê o texto, mas não possui as chaves da compreensão. Ele não consegue entender direito a história que envolve Rieux, Tarrou e Cottard. Terminado o livro, as sombras desaparecem no horizonte. Não deixam marcas.

Por um desses encantos que somente a ficção consegue produzir, quando iniciam a leitura de A promessa da aurora, de Roman Gary, alguma coisa está diferente. Nada palpável ou substancial. Sensível ao ordenamento do mundo, Margheritte percebe a mudança e incentiva esse deslocamento, oferecendo um presente. Germain, sem a mínima sutileza, emite opinião definitiva sobre o dicionário: faltam várias palavras e sobram outras tantas. Por isso resolve devolver o livro:

− Vou devolvê−lo. Não consigo usá−lo.
− Não consegue?
− Não sei escrever as palavras, não consigo encontrá−las. Quando encontro, não concordo!


O clímax da narrativa ocorre quando Margheritte conta para o amigo que está quase cega e não consegue mais ler. Esse é ponto nevrálgico do filme. A situação se inverte. Com muito esforço, tropeçando nas palavras que até a pouco não faziam parte de seu mundo simplório, Germain consegue tomar o lugar que até então pertencia a Margheritte.

Essa jornada amorosa pelos livros e pelo genuíno afeto contém outros elementos, todos secundários. O que importa é que, na companhia dos livros e de Margheritte, Germain se torna um homem melhor.

Descontando o idealismo, Minhas tardes com Margheritte é um desses filmes que enchem de carinho a vida do espectador.



Foi um encontro discreto do afeto com o amor
Ela não tinha outro teto
Tinha nome de flor
Vivia cercada de palavras
Adjetivos, substantivos, verbos e advérbios

Alguns chegam sem jeito
Ela chegou com doçura
Quebrou minha armadura
E se alojou no meu peito

Nas histórias de amor
Não há apenas o amor
Nunca dizemos... "Eu te amo"
No entanto, nos amamos

Não é uma história comum
Ela leu para mim
Num banco de jardim
Era frágil como uma pomba
Sentada àquela sombra
Cercada de palavras
De nomes comuns como eu
Me deu muitos livros
Que me tornaram mais vivo

Não morra agora
Espere um pouco
Não é hora, doce senhora
Me dê um pouco mais ainda
Um pouco mais da sua vida
Espere...

Nas histórias de amor
Não há apenas o amor
Nunca dizemos "Eu te amo"
No entanto, nos amamos.


(Poema narrado por Gérard Depardieu, enquanto sobem os créditos do filme Minhas tardes com Margheritte)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

MILTON HATOUM


A primeira vez que vi Milton Hatoum foi em 2002, na UFSC, em Florianópolis. Em um desses momentos que raramente se repetem, o escritor aceitou visitar o centro intelectual da província. Bagatela. Apenas um olá para a turma que precisava obter um certificado qualquer para dizer que cumpriu alguma bobagem acadêmica. Não era o meu caso. Queria ver e ouvir o cara. Morando a quase 400 km de distância, só me restou arrumar a mala e partir. Quase cinco horas de viagem. O preço por não ter carro (e detestar dirigir) é o desconforto do expresso Reunidas.

A grande novidade? O evento atrasou. Mais de hora. Houve problemas. Nunca soube se foi com o avião ou com o aeroporto. Sei lá. Coisa pouca. Pouca coisa. E que o mundo se foda, o preço do ingresso não vai baixar só porque houve algum incidente. Ou vai? Vai não. Diante dessas circunstâncias, a meia dúzia de gatos pingados que faria parte da claque, aproveitou a chance e sumiu por um daqueles corredores escuros e escusos, na direção ao só Deus sabe aonde. Como ninguém conseguia informar o que deveria ser informado, continuei a ler o que estava a ler – a minha maneira particular de tentar controlar a ansiedade.

Depois de séculos de espera, apareceu a margarida, digo, o convidado. Chegou cansado e sem paciência. Enquanto a organização do evento tentava arregimentar um arremedo de platéia, aproveitei a oportunidade para interromper a conversa entre o grande astro e um desses professores afetados – um desses que procuram esconder a óbvia ignorância com hermetismo e pose. Pedi autógrafos ao Milton. Nos exemplares de Dois Irmãos e Relato de um Certo Oriente. O que ele escreveu com aquela letra miúda, quase um carreiro de formiga, ainda hoje tenho dificuldades para decifrar. Não têm importância − foram palavras distantes, como as de qualquer autógrafo.

Agradeci. E me afastei. Havia planejado lhe dizer que parte da minha tese de doutorado era sobre um dos livros que ele escreveu. Desisti. Não consegui superar as barreiras. Foi melhor assim.

Ao lado de Susana Scramin, Hatoum falou menos de uma hora. Leu um desses textos prontos, prontamente sacado de algum bolso do casaco. Tão logo terminou a leitura, agradeceu o público (menos de quinze pessoas) e se preparou pra ir embora. Foi impedido. Alguém fez uma pergunta. Lá no fundo, outra pergunta. Levantei a mão e, quando me foi concedida a palavra, tentei iniciar uma provocação. Fiz alusão às inevitáveis comparações entre Dois Irmãos, Esaú e Jacó (do Machado de Assis) e Pedro e Paula (do Helder Macedo). Sem muita paciência, ele rebateu o questionamento e teceu considerações óbvias sobre o livro de Machado. Com visível enfado, renegou Pedro e Paula, dizendo que só o conheceu muito depois de ter escrito Dois Irmãos. Não me convenceu. Mas, fazer o quê? Antes mesmo que me fosse possível reagir a tamanho descaso, ele já estava respondendo outra pergunta, abordando outro assunto e de forma igualmente sucinta.

De volta à rodoviária, fiquei a rever os principais acontecimentos daquela noite, enquanto tinha os exemplares autografados nas mãos. Várias horas na estrada foi castigo menor para a aventura.

Somente o encontrei – ao vivo e em cores − dois anos depois, em Porto Alegre, no IX Congresso da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada). Ao saber que, na companhia de Tabajara Ruas e Luiza Valenzuela, ele leria um texto (Manaus, Bombaim, Palo Alto: Viagens do Imaginário), nada mais me restou senão ir até o auditório e aplaudir feito fã (na companhia de umas oitocentas pessoas). Guardei aquela imagem para sempre. Afinal, só aos grandes é que devemos oferecer ouro, incenso e mirra. Obviamente, retirei parte dessa devoção quando li trechos do texto de Porto Alegre publicados em A Cidade Ilhada, livro em que a energia e o talento parecem ter sido esquartejados por um equívoco literário. Tudo bem, os nossos ídolos também tropeçam.

Nunca mais o vi. Exceto em entrevistas de televisão ou em textos de jornais. Comprei e li tudo o que ele publicou. Raramente sinto aquele prazer que me devorou nos dois primeiros livros. Faz parte do pacote. Assim como Omar, na última cena de Dois Irmãos, em determinado momento é necessário virar as costas e ir embora – enfrentar a solidão proposta por outros livros e autores, sem as amarras do coração.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

MACHADO DE ASSIS FOI O MICHAEL JACKSON DO SÉCULO XIX


Joaquim Maria Machado de Assis foi o Michael Jackson do século XIX – e, sem exageros, em diferentes níveis. Nasceu negro (as almas mais caridosas, como se isso amenizasse a situação!, costumam afirmar que ele era mulato) e tentou – de todas as maneiras possíveis – mudar a cor de pele que a natureza lhe forneceu.

Considerando que as cirurgias “cosméticas” não existiam na época e que não precisou superar os traumas psicológicos causados pela despigmentação (vulgo vitiligo), Machado usou doses cavalares de alvejante literário para diminuir a sua aflição. Escreveu crônicas, poemas, romances, teatro, e, em um gesto típico de alpinismo social (que não passou desapercebido ao mundo que ele estava invadindo), fundou a Academia Brasileira de Letras. A sociedade remanescente do II Império, saudosa das ilusões literárias civilizadas que a corte dos Alcântaras nunca propiciara, aclamou a idéia como genial – pouco se importando com um fato elementar: era (ainda é) uma cópia miserável do modelo francês.

Algum tempo mais tarde, em uma das primeiras eleições da Academia, Machado mostrou que o embranquecimento social estava ligado com questões ideológicas: firmou posição inabalável contra a candidatura de Lima Barreto (que, entre tantos defeitos/qualidades, era alcoólatra e escritor brilhante – ah, também não era branco). Em outra ocasião, defendendo posições pouco literárias, Machado articulou a candidatura e a eleição de Mário de Alencar. Quem? Pois é, até os arqueólogos da literatura brasileira terão dificuldades para encontrar algum texto de qualidade do filho de José de Alencar. Questões de compadrio literário à parte, impossível esquecer que o moço era branco, jovem e bonito – e Machado gostava de sua companhia.

Para eliminar boatos pouco respeitáveis (reabertos com a recente publicação de alguns ensaios do John Gledson) e compor uma imagem adequada às suas aspirações de intelectual, Machado - em determinada fase de sua vida - precisou casar. Apesar de inexistirem registros de patuscadas machadianas nos mais sifilíticos bordeis cariocas (o que fornece uma incerta credibilidade à tese especulativa de que o artista não era um grande adepto das artes praticadas nas alcovas), há quem diga que o “Bruxo do Cosme Velho” não foi uma espécie de Henry James (segundo alguns biógrafos mais bisbilhoteiros, morreu virgem dos dois lados). De qualquer forma, registre-se que Machado manifestou grande euforia quando conheceu a sua cara-metade. Moça não muito moça, Carolina era cinco anos mais velha que o escritor e trazia como dote um bônus especial: na época, sabores finos para paladares refinados somente poderiam ser obtidos na Europa e a eleita para dividir o tálamo conjugal era recém-chegada de Portugal.

Essa história de amor/humor (que não teve filhos e não transmitiu a nenhuma criatura o legado de sua miséria) está retratada em diversos poemas, crônicas, cartas e depoimentos de quem conheceu o casal – comprovando que os contos de fadas podem avançar na realidade, substituindo o pessimismo realista pelas maravilhas românticas. Ou seja, eles foram felizes para sempre, digo, até o derradeiro dia da separação (ver o soneto À Carolina, tributo poético de um viúvo inconsolável). Paralelo a toda essa fortuna conjugal, existem várias versões sobre um “drama de família” que parece ter sido o motivo da viagem de Carolina ao Rio de Janeiro. Os mais maldosos insinuam que a juventude da senhora fora repleta de fornicações em alguns prostíbulos de Lisboa. Décio Pignatari, em Céu de lona, sugere um aborto (o causador da infâmia seria um homem casado). Passeando entre a verdade e a mentira, todos os biógrafos “oficiais” de Machado são taxativos em afirmar que esses rumores não passam de calúnia de invejosos, nunca ninguém conseguiu provar coisa alguma, inclusive porque o comportamento de Carolina, ao lado do fidelíssimo consorte, foi irrepreensível.

Resolvido o problema das aparências e disfarçando a sua condição de eu-já-não-sou-o-que-eu-era-antes-de-me-tornar-branco, Machado aproveitou as circunstâncias e criou o seu próprio moon walking: escreveu vários romances, imersos em uma aura literária particular. Em capítulos curtos, cheios de interrupções por histórias paralelas (em que se misturam humor britânico, elegância francesa e o sempre bem-vindo tempero da cultura helênica), as narrativas são apresentadas ao leitor semiletrado do fim do século XIX e do início do século XX como algo divertido, fácil de ser digerido. Em alguns momentos, a prosa machadiana apresenta uma fluidez nunca antes vista (ou repetida) no Brasil. Machado escreve como se estivesse respirando. É algo que lhe é natural. Apesar disso, cabe ter cuidado com o canto da sereia – que nunca é saudável. Ficar maravilhado com a técnica do escritor não significa ignorar que Machado de Assis optou por defender (ou não defender, como dizem alguns hagiógrafos) posições muito “claras”: monarquista nos tempos do Império, sem demonstrar sentimentos anti-republicanos nos tempos da República, camaleão sempre que surgiam dificuldades. São raros os momentos em que encontramos em seus livros discussões políticas sobre a época em que vivia (salvo questões muito pontuais). Sobre a abolição da escravatura, nem com microscópio se encontra uma opinião significativa. Em Esaú e Jacó, os primeiros anos da República são descritos como se tivessem a mesma importância de um vaso de flores a decorar a sala.

Escondido no ritmo fragmentário do folhetim, suporte em que alguns dos romances de Machado foram publicados originalmente, o estilo do Mestre possibilita boas alavancas para idéias maiores, muitas vezes situadas em lugares insuspeitos, talvez em uma frase perdida no meio do parágrafo, talvez em um título de capítulo que somente as mentes mais atiladas conseguiam/conseguem perceber - e aplaudir. Melhor ainda, é possível que esses momentos de brilhantismo talvez sequer existam, mas a chance de haver algo sempre alimentou a suspeita de que a genialidade (esconder o banal atrás de inúmeras pistas falsas) não é para qualquer um. Por isso, mesclando a dissimulação e a esperteza, tentando proteger algumas deficiências, Machado foi construindo uma estratégia literária similar a uma teia de aranha: fios suspensos no ar a espera de alguma mosca desprevenida. Descoberta a receita do bolo, o Machado nunca mais passou fome.

Inclusive, porque, como membro adestrado da “working class”, vítima de várias enfermidades (gagueira e epilepsia, entre outras) e pouco predisposto a heroísmos militares (talvez por sentir ligeiro mal-estar ao ver sangue, principalmente o próprio sangue), preferiu ingressar no serviço público, profissão em que foi bem sucedido durante o II Império - não se sabe se por ter bons padrinhos ou por ter puxado o saco de algum membro da “nova nobreza” (que, na falta de “berço”, se sentia elevada socialmente gerenciando alguma sinecura estatal). Enfim, Machado teve uma trajetória profissional exemplar, modelo para o feijão-com-arroz que a pretensa intelectualidade brasileira (seja por ser menos aquinhoada, seja por ser mais indolente) aceita com a desculpa de que precisa sobreviver.

O mundo (e a literatura brasileira, em especial) é uma opereta e Machado de Assis, que construiu um mundo diferente daquele em que viveu, antecipou o grande espetáculo: Michael Jackson dançando e cantando They don’t care about us (suprema ironia abolicionista!, com o Olodum!) nas ruas das favelas cariocas.



Uma das características que mais surpreende na análise literária brasileira é a ataraxia crítica. Salvo circunstâncias muito especiais, a hipocrisia impera e tempera o mundo das aparências, dos salamaleques e dos beija-mãos. Envoltos no incenso da mediocridade, raros são aqueles que enfrentam as questões cruciais ou os pontos nevrálgicos. Talvez essa seja uma das possíveis explicações para um interessante anacronismo: os dois mais importantes interpretes da obra de Machado de Assis não são brasileiros de nascimento – Roberto Schwarz nasceu na Áustria e John Gledson é inglês.

Mais do que de bons escritores, a literatura e a crítica brasileira precisam é de coragem. Enquanto isso não existir, os nossos romances, contos, poemas e ensaios críticos continuarão fornecendo carga para uma frota de caminhões com as figuras de linguagem que caracterizam o escapismo (metáforas, metonímias, elipses e hipérboles).