quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
MACHADO DE ASSIS FOI O MICHAEL JACKSON DO SÉCULO XIX
Joaquim Maria Machado de Assis foi o Michael Jackson do século XIX – e, sem exageros, em diferentes níveis. Nasceu negro (as almas mais caridosas, como se isso amenizasse a situação!, costumam afirmar que ele era mulato) e tentou – de todas as maneiras possíveis – mudar a cor de pele que a natureza lhe forneceu.
Considerando que as cirurgias “cosméticas” não existiam na época e que não precisou superar os traumas psicológicos causados pela despigmentação (vulgo vitiligo), Machado usou doses cavalares de alvejante literário para diminuir a sua aflição. Escreveu crônicas, poemas, romances, teatro, e, em um gesto típico de alpinismo social (que não passou desapercebido ao mundo que ele estava invadindo), fundou a Academia Brasileira de Letras. A sociedade remanescente do II Império, saudosa das ilusões literárias civilizadas que a corte dos Alcântaras nunca propiciara, aclamou a idéia como genial – pouco se importando com um fato elementar: era (ainda é) uma cópia miserável do modelo francês.
Algum tempo mais tarde, em uma das primeiras eleições da Academia, Machado mostrou que o embranquecimento social estava ligado com questões ideológicas: firmou posição inabalável contra a candidatura de Lima Barreto (que, entre tantos defeitos/qualidades, era alcoólatra e escritor brilhante – ah, também não era branco). Em outra ocasião, defendendo posições pouco literárias, Machado articulou a candidatura e a eleição de Mário de Alencar. Quem? Pois é, até os arqueólogos da literatura brasileira terão dificuldades para encontrar algum texto de qualidade do filho de José de Alencar. Questões de compadrio literário à parte, impossível esquecer que o moço era branco, jovem e bonito – e Machado gostava de sua companhia.
Para eliminar boatos pouco respeitáveis (reabertos com a recente publicação de alguns ensaios do John Gledson) e compor uma imagem adequada às suas aspirações de intelectual, Machado - em determinada fase de sua vida - precisou casar. Apesar de inexistirem registros de patuscadas machadianas nos mais sifilíticos bordeis cariocas (o que fornece uma incerta credibilidade à tese especulativa de que o artista não era um grande adepto das artes praticadas nas alcovas), há quem diga que o “Bruxo do Cosme Velho” não foi uma espécie de Henry James (segundo alguns biógrafos mais bisbilhoteiros, morreu virgem dos dois lados). De qualquer forma, registre-se que Machado manifestou grande euforia quando conheceu a sua cara-metade. Moça não muito moça, Carolina era cinco anos mais velha que o escritor e trazia como dote um bônus especial: na época, sabores finos para paladares refinados somente poderiam ser obtidos na Europa e a eleita para dividir o tálamo conjugal era recém-chegada de Portugal.
Essa história de amor/humor (que não teve filhos e não transmitiu a nenhuma criatura o legado de sua miséria) está retratada em diversos poemas, crônicas, cartas e depoimentos de quem conheceu o casal – comprovando que os contos de fadas podem avançar na realidade, substituindo o pessimismo realista pelas maravilhas românticas. Ou seja, eles foram felizes para sempre, digo, até o derradeiro dia da separação (ver o soneto À Carolina, tributo poético de um viúvo inconsolável). Paralelo a toda essa fortuna conjugal, existem várias versões sobre um “drama de família” que parece ter sido o motivo da viagem de Carolina ao Rio de Janeiro. Os mais maldosos insinuam que a juventude da senhora fora repleta de fornicações em alguns prostíbulos de Lisboa. Décio Pignatari, em Céu de lona, sugere um aborto (o causador da infâmia seria um homem casado). Passeando entre a verdade e a mentira, todos os biógrafos “oficiais” de Machado são taxativos em afirmar que esses rumores não passam de calúnia de invejosos, nunca ninguém conseguiu provar coisa alguma, inclusive porque o comportamento de Carolina, ao lado do fidelíssimo consorte, foi irrepreensível.
Resolvido o problema das aparências e disfarçando a sua condição de eu-já-não-sou-o-que-eu-era-antes-de-me-tornar-branco, Machado aproveitou as circunstâncias e criou o seu próprio moon walking: escreveu vários romances, imersos em uma aura literária particular. Em capítulos curtos, cheios de interrupções por histórias paralelas (em que se misturam humor britânico, elegância francesa e o sempre bem-vindo tempero da cultura helênica), as narrativas são apresentadas ao leitor semiletrado do fim do século XIX e do início do século XX como algo divertido, fácil de ser digerido. Em alguns momentos, a prosa machadiana apresenta uma fluidez nunca antes vista (ou repetida) no Brasil. Machado escreve como se estivesse respirando. É algo que lhe é natural. Apesar disso, cabe ter cuidado com o canto da sereia – que nunca é saudável. Ficar maravilhado com a técnica do escritor não significa ignorar que Machado de Assis optou por defender (ou não defender, como dizem alguns hagiógrafos) posições muito “claras”: monarquista nos tempos do Império, sem demonstrar sentimentos anti-republicanos nos tempos da República, camaleão sempre que surgiam dificuldades. São raros os momentos em que encontramos em seus livros discussões políticas sobre a época em que vivia (salvo questões muito pontuais). Sobre a abolição da escravatura, nem com microscópio se encontra uma opinião significativa. Em Esaú e Jacó, os primeiros anos da República são descritos como se tivessem a mesma importância de um vaso de flores a decorar a sala.
Escondido no ritmo fragmentário do folhetim, suporte em que alguns dos romances de Machado foram publicados originalmente, o estilo do Mestre possibilita boas alavancas para idéias maiores, muitas vezes situadas em lugares insuspeitos, talvez em uma frase perdida no meio do parágrafo, talvez em um título de capítulo que somente as mentes mais atiladas conseguiam/conseguem perceber - e aplaudir. Melhor ainda, é possível que esses momentos de brilhantismo talvez sequer existam, mas a chance de haver algo sempre alimentou a suspeita de que a genialidade (esconder o banal atrás de inúmeras pistas falsas) não é para qualquer um. Por isso, mesclando a dissimulação e a esperteza, tentando proteger algumas deficiências, Machado foi construindo uma estratégia literária similar a uma teia de aranha: fios suspensos no ar a espera de alguma mosca desprevenida. Descoberta a receita do bolo, o Machado nunca mais passou fome.
Inclusive, porque, como membro adestrado da “working class”, vítima de várias enfermidades (gagueira e epilepsia, entre outras) e pouco predisposto a heroísmos militares (talvez por sentir ligeiro mal-estar ao ver sangue, principalmente o próprio sangue), preferiu ingressar no serviço público, profissão em que foi bem sucedido durante o II Império - não se sabe se por ter bons padrinhos ou por ter puxado o saco de algum membro da “nova nobreza” (que, na falta de “berço”, se sentia elevada socialmente gerenciando alguma sinecura estatal). Enfim, Machado teve uma trajetória profissional exemplar, modelo para o feijão-com-arroz que a pretensa intelectualidade brasileira (seja por ser menos aquinhoada, seja por ser mais indolente) aceita com a desculpa de que precisa sobreviver.
O mundo (e a literatura brasileira, em especial) é uma opereta e Machado de Assis, que construiu um mundo diferente daquele em que viveu, antecipou o grande espetáculo: Michael Jackson dançando e cantando They don’t care about us (suprema ironia abolicionista!, com o Olodum!) nas ruas das favelas cariocas.
Uma das características que mais surpreende na análise literária brasileira é a ataraxia crítica. Salvo circunstâncias muito especiais, a hipocrisia impera e tempera o mundo das aparências, dos salamaleques e dos beija-mãos. Envoltos no incenso da mediocridade, raros são aqueles que enfrentam as questões cruciais ou os pontos nevrálgicos. Talvez essa seja uma das possíveis explicações para um interessante anacronismo: os dois mais importantes interpretes da obra de Machado de Assis não são brasileiros de nascimento – Roberto Schwarz nasceu na Áustria e John Gledson é inglês.
Mais do que de bons escritores, a literatura e a crítica brasileira precisam é de coragem. Enquanto isso não existir, os nossos romances, contos, poemas e ensaios críticos continuarão fornecendo carga para uma frota de caminhões com as figuras de linguagem que caracterizam o escapismo (metáforas, metonímias, elipses e hipérboles).
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Simplesmente maravilhoso ler a estória de um ícone da literatura brasileira!!!!
ResponderExcluirObrigado! Embora, como podes perceber, o meu olhar é um pouco diferente daquele que é recomendado pelos compêndios escolares.
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