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segunda-feira, 25 de abril de 2016

A ÚLTIMA PALAVRA

Todos os fãs da literatura são voyeurs. Mais do que apenas escolher seus livros favoritos – na impossibilidade de escrevê-los! –, eles querem saber detalhes da vida intima dos escritores. Fulano passou fome? Excelente! Beltrano escrevia dez páginas por dia? Incrível! Sicrano tinha problemas de caráter? Crápula! Quanto mais bizarras forem as revelações, melhor. Principalmente aquelas que descrevem algum desvio de caráter sexual. É para isso que servem as biografias: satisfazer a curiosidade mórbida do leitor que não se contenta com o conteúdo dos livros. Essa extensão (ficcional ou real?) equivale ao olhar pelo buraco da fechadura e ver o que o texto não confessa. O uso da “confissão”, nesse caso, parece apropriado, visto que muitos escritores costumam afirmar que vida e obra são compartimentos distintos, que nunca se misturam. Não é bem assim. O poeta é um fingidor, finge tão completamente e etc. Enfim, não é necessário recitar o poema todo para que se perceba que alguém sempre está mentindo e, mais importante, mentindo mal. Ou seja, a tese de que a ficção de um escritor se mostra mais poderosa do que a vida do escritor esbarra na afirmação de Harry Johnson, protagonista de A Última Palavra, de Hanif Kureishi, A vida e a escrita formam um livro contínuo. É assim com todos os escritores. Pode ser, mas em alguns casos, a vida privada é mais fascinante do que a vida ficcional.  

Hanif Kureishi
No romance A Última Palavra, a vida pessoal de Mamoon Azam é invadida. O editor Rob Deveraux contrata Harry Johnson para escrever a biografia do célebre escritor inglês (de origem indiana). A tarefa se mostra muito mais difícil do que parecia em um primeiro instante. 

Descobrir algo que alguém – propositalmente – deseja esconder constitui uma das situações mais complicadas do universo humano. Todos os envolvidos precisam estar preparados para as mudanças que se seguem – embora ninguém tenha capacidade (física, emocional) para enfrentar esse tipo de tempestade. Espelho ligeiramente embaçado da realidade, a ficção está repleta de surpresas.

Hanif Kureishi e Stephen Frears, parceria que rendeu
excelentes filmes como My Beautiful Laudrette (1985)
e Sammy and Rosie Get Laid (1987).
Em algum momento, depois de vários insucessos em obter as mais básicas informações do biografado, Harry percebe que Um escritor é amado por desconhecidos e odiado por seus familiares. Diante desse tipo de “insight”, confirmada nas centenas de páginas do diário de Peggy, a primeira e falecida esposa de Mamoon, Harry, inseguro, pergunta para si mesmo, várias vezes, se tem a capacidade necessária para finalizar o trabalho. Como não obtém uma resposta satisfatória à questão, aproveita a crise para desfrutar das delicias sexuais que a vida oferece. Sua namorada, Alice, não costuma negar prazeres.  No entanto, é no corpo de Julia (uma agregada de Mamoon) que ele encontra o necessário lenitivo para ir em frente. Assim, pulando de uma cama para outra, tudo se confunde, névoa que arrasta o leitor para um abismo de humor, sarcasmo e ironia. Não há dúvidas, o fundo do poço é o aqui e o agora. Sem anestésico.

A maioria dos bons livros não é, afinal, sobre nossas fraquezas sexuais?, pergunta Harry, enquanto recebe boas bengaladas pelo corpo, em um dos momentos mais hilários do livro, o biografado furioso descontando no biógrafo medíocre as suas frustrações mais elementares. Mamoon, cansado pelo esforço, resume a cena em poucas palavras: Sua obra é feita de inveja e você não passa de um semifracasso de terceira categoria, um parasita que consegue sobreviver graças a um encanto de meretriz e a uma boa aparência que já está definhando. Por acaso você já viu um biógrafo capaz de escrever tão bem quanto seu biografado?

O que ele quer dizer, em outras palavras, é que toda biografia resulta em um conjunto de decepções. Aquele que escreve fica insatisfeito com o resultado final (sempre acreditando que poderia melhorar isso ou aquilo). Quem lê sempre quer mais, muito mais, mesmo que não seja a descrição dos acontecimentos. Entre o real e a lenda, a escolha mais sincera é sempre pela segunda alternativa.

O passado é um rio e não uma estátua, diz o pai de Harry, alertando para as armadilhas que acompanham aqueles que investigam a História humana. Quem quer trabalhar com esse tipo de pesquisa (ou em áreas correlatas) precisa ver os fatos como um fluxo caudaloso, em constante deslocamento, e não como um monte de elementos estanques. Somente assim se conseguirá obter um esboço pálido dos acontecimentos – que devem ser reconstruídos literariamente. Para Harry, As palavras eram a ponte para a realidade; sem elas só existia o caos. Palavras ruins podiam nos envenenar e arruinar nossa vida, disse Mamoon um dia; e as palavras certas podiam recolocar a realidade em foco. A loucura de escrever era o antídoto para a loucura verdadeira.
 
V. S. Naipaul
O final do romance é surpreendente, o efeito especular emergindo das trevas, convocando forças que ainda não tinham entrado em jogo. O narrador de A Última Palavra, embriagado por alcançar algum ponto relevante na sua tarefa, declara, de maneira absolutamente simples, O romancista é qualquer coisa – trapaceiro, vigarista, impostor: como quiser. Mas, acima de tudo, é um sedutor.

PS) Quando A Última Palavra foi lançado na Inglaterra, em 2014, muitos críticos aventaram a possibilidade de se tratar de um “roman à clef” sobre a vida de Vidiadhar Surajprasad Naipaul (ganhador do Premio Nobel de Literatura, em 2001). Desmentidos foram emitidos. Mas, para o bem ou para o mal, a questão permanece.


TRECHO ESCOLHIDO


O trem deslizava por cidades-cemitério e Harry viu seu corpo amotinado contra a ideia de se encontrar com Mamoon naquele dia; de fato, sentia medo de todo aquele projeto, sobretudo depois que Rob, passando a beber mais ainda, não parou de repetir que seria a “grande tacada” de Harry. Rob “acreditava” em Harry, mas teve a franqueza de declarar que Harry estava longe de cumprir com seu potencial, um potencial que ele, Rob, havia reconhecido, contra uma oposição considerável. Com Rob, um beijo costumava ser seguido de uma bofetada.

“Eu venho amaciando o Mamoon para você, cara”, acrescentou Rob, quando o trem se aproximou da estação.

“Amaciando como?”

“Contando para ele que você sabe das coisas e fica noites em claro lendo os livros mais densos do mundo. Hegel, Derrida, Musil, Milton... eh...”

“Você disse que eu entendo de Hegel?”

“Não é fácil vender você. Tive de começar do zero.”

“Vamos supor que ele me pergunte a respeito da dialética de Hegel. E aí?”

“Você vai ter de oferecer uma visão geral para ele.”

“E quanto ao meu primeiro livro? Você não enviou um exemplar para ele?”

“Acabei tendo de fazer isso, afinal. Mas o livro tinha seus longueurs, até sua mãe concordaria com isso. O velho lutou com unhas e dentes para vencer a introdução e teve de ficar de cama uma semana com o Suetônio para purificar o paladar. Portanto, alcance esse novo patamar, cara, senão vai acabar se fodendo tanto que vai ter que ganhar a vida como professor universitário. Ou coisa pior...”

“Pior? O que pode ser pior do que um ex-aluno de escola politécnica?”

Rob fez uma pausa e lançou um olhar pela janela antes de transmitir as novidades. “Você teria de dar aulas de escrita criativa.”

“Por favor, não. Eu não seria capaz.”

“Melhor ainda. Imagine ficar perdido para sempre numa floresta escura de primeiros romances inacabados que requerem sua atenção total.” Rob juntou seus trapos e se levantou. “Vejo que chegamos à terra devastada! Olhe para fora – veja este pântano, povoado por boécios tatuados, gárgulas e espantalhos que cheiram cola. O horror, o horror! Está pronto para o começo do resto da sua vida?”

terça-feira, 19 de abril de 2016

PETROS MARKARIS: DOIS ROMANCES POLICIAIS


O melhor amigo de um investigador policial é o dicionário. Essa tese, defendida pelo Inspetor Kostas Xaritos, está desenvolvida nos romances policiais escritos pelo grego (nascido na Turquia) Petros Markaris. Salvo engano, apenas duas das aventuras de Xaritos foram traduzidas no Brasil: A Hora da Morte (2008) e Os Amantes da Noite (2010). Lamento ter conhecido esses romances somente agora – pois perdi, durante muito tempo, boa diversão.

Como é de conhecimento geral, leitores compulsivos são incapazes de resistir a uma promoção – qualquer promoção – na livraria da esquina. Aliás, nem precisa ser na esquina. Vinte quilômetros ou dez quarteirões, tudo é desafio, a cidade escorrendo pelas janelas do transporte coletivo, e o sujeito volta com a sacola cheia, sem arrependimentos, a alma em festa. Distância nunca foi sinônimo de impedimento.  Outro dia, em um desses eventos, encontrei um exemplar de Os Amantes da Noite. Título ruim. Parece livro pornográfico – ou coisa pior. O que me chamou a atenção foi uma informação acessória na orelha da contracapa. Petrus Markaris foi parceiro, em alguns roteiros de cinema, de Theo Angelolopoulos (diretor de Paisagem na Neblina, 1988, entre outros belos filmes). Eles estão juntos em, por exemplo, A Eternidade e um Dia (1998). Contra isso não há argumentos, pensei. Acrescentei o livro à cesta de compras e segui adiante. Umas duas semanas depois, vitima de insônia, fui procurar algo para me acompanhar no suplício. Li as primeiras frases e... Quando percebi, o dia estava amanhecendo e tinha devorado um terço da narrativa. Se considerarmos que o texto tem 477 páginas, então...

Kostas Xaritos é um homem simples. Daqueles que necessitam superar muitas dificuldades para entender as complicações do mundo. Cada um dos casos que resolve se assemelha a uma batalha medieval. Em suas aventuras sobram violência, sangue e coragem. Também precisa enfrentar problemas domésticos – contra os quais se rebela, sem o mínimo sucesso. A esposa, Adriana, e a filha, Katerina, o atormentam – embora ele (às vezes, a contragosto) faça de tudo o que lhe é possível para agradá-las. Raramente consegue. Em compensação, há reconciliações, “recheados” (tomates, pimentões e abobrinhas) e algum amor. O que mais pode querer um homem bom? 

Um pouco perplexo com esse conjunto de desafios e tempestades, resta-lhe a companhia dos volumes escritos por Dimitrákou, Lidell-Scott, Voztazóglou, Andrioti, Tégopoulou-Fitráki, além do Webster e do Oxford e outros menos cotados. Nos verbetes dos dicionários – que jamais podem ser considerados como uma rota de fuga – ele encontra todas as explicações que o mundo concreto não consegue lhe fornecer. E, em alguns casos, pistas para desvendar os casos em que está trabalhando. 

Kostas Xaritos lembra (ao longe, ao longe) o Comissário Salvo Montalbano (personagem criado pelo italiano Andrea Camilleri). Mas, enquanto Montalbano é naturalmente engraçado, Xaritos ostenta um mau humor sem fim. Tudo o aborrece. E, claro, essa é uma de suas características mais peculiares. Um dos motivos que ajudam a explicar esse comportamento ranzinza está na evolução de sua carreira policial. Iniciou como carcereiro em uma prisão, durante a ditadura militar. Depois, aos poucos, foi ascendendo na profissão (inclusive com uma passagem pela Delegacia de Narcóticos). O contato com o crime (e suas variantes) foi curtindo a pele de Xaritos, o foi transformando em um homem amargo – mas, com um senso crítico admirável. Com estoicismo suporta essa mistura de dissimulação e política que está espelhada na figura daquele que muitas vezes o faz perceber que o melhor caminho para solucionar um caso não é uma linha reta – o chefe de polícia, Nikoláo Guikas.  

Do ponto de vista narrativo, os dois romances não apresentam nenhuma novidade. São narrativas em primeira pessoa (protagonista-narrador), onde os acontecimentos descritos em ordem direta sofrem alguns desvios dramáticos nos momentos em que Xaritos relata as crises familiares (introduzindo um pouco de humanidade em um mundo cruel e insensato).

Para quem aprecia o gênero policial, os dois romances de Petros Markaris publicados no Brasil (A Hora da Morte e Os Amantes da Noite) são entretenimento de primeira qualidade.


TRECHO ESCOLHIDO 


Fiquei furioso comigo mesmo porque queria relaxar e acabei irritado. Peguei de novo o Dimitrákou. Tinha caído de qualquer jeito e algumas de suas folhas estavam amarrotadas. Enquanto estava tentando endireitá-las, meus olhos caíram na palavra imbecil. Fiquei pensando que esta palavra expressava exatamente o que eu era e comecei a ler o verbete para encontrar as minhas raízes. “Imbecil, do latim imbecille, o idiota, o tolo, o covarde, o pusilânime, o estúpido. Aquele de quem se zomba, o ridículo, o bebê, o burro.” Muito bem, o ridículo dera as 35 mil para Adriana e, além disso, ouviu seus comentários sobre ele. O bebê quis saber exatamente porque a querida Karayióryi brincava com palavras que sugeriam a existência de crianças, tendo já embrulhado o caso com papel autocolante. E o burro tinha envolvido Atanásio no caso para descobrir o que queria saber. Seria assim que Guikas iria me catalogar, se soubesse o que eu havia pedido a Atanásio: cabra tosquiado, ridículo. Ele vai me tosquiar com máquina fina. Meu pai me chamava de asno. Na época, eu não sabia o que significava, nem ousava perguntar para que ele não pensasse que eu o estava gozando e me desse uma bofetada. Foi a primeira palavra que fui procurar assim que um dicionário caiu em minhas mãos. “Asno = 1) jumento, designação comum a diversos mamíferos do gênero Equus; 2) indivíduo pouco inteligente, burro.” De asno a ridículo, esta foi a estrada descendente da minha dignidade. Não me queixo. Este é o destino dos homens. Nove entre dez começam garanhões e acabam como asnos. (In: A Hora da Morte).

terça-feira, 5 de abril de 2016

GATO


"A vida é transitória. Até as sete vidas dos gatos têm prazo de validade." Foi isso, na falta de argumento melhor, o que disse ao Mítia – quando ele me comunicou que Gato deixou de existir. Nenhuma surpresa. Gato estava doente. E o veterinário havia sugerido o fim do sofrimento algum tempo antes. Apesar de tudo, como compete aos gatos que professam o estoicismo, Gato resistiu bravamente aos seus últimos dias.

Gato entrou nas nossas vidas de forma ardilosa. Escrevo “nossas vidas” ciente de que existe uma imprecisão terminológica nessa frase, já faz bastante tempo que não pertenço à família. De qualquer forma, o que gostaria de esclarecer é que também fui afetado pela existência do gato.

Mítia foi passar alguns dias no litoral, durante as férias. Não lembro exatamente da data. Faz, provavelmente, uns dez ou doze anos. O gato vivia por lá, sem domicílio regular. Comia quando havia o que comer, dormia onde era possível. Era, basicamente, um sem-teto. Por razões que a razão desconhece, em determinado momento, o animal resolveu adotar o turista. Além disso, permitiu que ele fosse contaminado pelo autoengano. Ao imaginar que estava perfilhando um gato, Mítia ignorou que era o felino que detinha o poder sobre ele. Uma nova versão da velha história de “vender gato por lebre”, se é que posso usar aqui um péssimo trocadilho.

O fato concreto é que, quando as férias terminaram, o bichano subiu a serra. Imediatamente tomou posse do novo lar. Esse gesto de bondade com os humanos lhe custou caro. Foi castrado. Protestei contra, mas – como sempre – fui voto vencido. Aliás, nem eu nem o gato tínhamos direito ao voto.

Pois é, comida e proteção equivalem à escravidão. Não sei se Gato chegou a essa conclusão, no momento que perdeu a virilidade. Eu, testemunha ocular da história, fiquei triste com o desfecho, imaginando que ele, o gato, se transformaria em um bibelô gordo, desses que ornamentam a sala de visitas dos burgueses. Claro que estava enganado. Gato tinha personalidade. Sempre se recusou a ser domesticado. Extremamente curioso, corria para lá e para cá toda vez que havia algum movimento suspeito.  Adorava infernizar a vida de Tutu (a outra gata da casa). Cometia pequenos e grandes delitos. Transformava os humanos em brincadeira de “gato e sapato”. A verdade é que ele tinha uma péssima personalidade. Somente fazia o que queria. E quando queria.

A escolha do nome de Gato foi outra epopeia. Creio que aqueles que tiveram o prazer de conviver com ele testaram várias alternativas e nenhuma se mostrou satisfatória. Com a altivez de um deus egípcio, Gato fazia questão de descartar as mais óbvias possibilidades. Também recusou algumas tentativas exóticas. Não respondia aos chamados, mostrava cara feia, miava com intensidade. Sem escolhas, o seu dono (dono?) concordou em chamá-lo Gato (assim, com G maiúsculo).

Não é desses fatos corriqueiros que quero lembrar. A imagem que vou guardar é outra. Quando eu ia até o apartamento em que Mítia morava, Gato costumava se aproximar de mansinho (aquela velha manha de quem não quer nada e fica feliz quando leva tudo), e subia no meu colo. Se eu não manifestasse contrariedade, ele subia mais um pouco, deitava no meu peito, fechava os olhos e ficava em doce ronronar até que um de nós dois se cansasse e modificasse a situação.

Pensando bem, não era somente comigo. Muitas vezes o vi fazer isso com Mítia. Ao transmitir o calor de seu corpo para algum outro corpo, ele estava passando uma mensagem de carinho. Era uma forma de interação social? Não sei. Talvez fosse uma concessão para aqueles que o protegiam. Gato era um enigma. E isso contribuía para que olhássemos para ele com ternura. Com a ternura que merecem os rebeldes.

Apesar de ser um animal independente, egocêntrico e próximo do anarquismo, Gato era simpático – desde que isso lhe fosse conveniente. Sabia conquistar atenção e afeto na mesma proporção com que declarava aversão com aqueles que não se submetiam aos seus caprichos. E não foi para poucos que mostrou alguma hostilidade. 

Agora, que não o temos mais entre nós, percebo que esta elegia fúnebre é uma forma de dizer que Gato deixou uma imensa saudade, dessas que não tem conserto.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

ASCO - Thomas Bernhard em San Salvador

Ninguém resiste aos mecanismos de sedução da iconoclastia. A vontade de jogar farofa no ventilador costuma ser uma receita fácil para quem alimenta desejos de romper com o establishment. Isso fica evidente em Asco, novela escrita por Horacio Castelllanos Moya (nascido em Honduras, mas cidadão de El Salvador), onde quase todos os pecados de um pequeno país centro-americano são revelados através de um discurso ressentido.

O subtítulo da narrativa – Thomas Bernhard em San Salvador – indica as origens literárias de Asco. Também aponta para o uso de uma formula pronta (parágrafo monolítico, variações espaçadas e repetitivas do mesmo tema, doses maciças de ressentimento, descontrole emocional), onde Horacio Castellanos Moya preencheu os espaços em branco e produziu um texto ad hoc.

Em Asco, Edgardo Vega, que mora no Canadá, regressa a El Salvador para assistir ao enterro da mãe. Hospeda-se na casa do irmão, enquanto aguarda que os tramites burocráticos referentes à herança se completem.

Depois de quinze dias em San Salvador, Edgardo convida para uma conversa o amigo de infância, Moya (que exerce, no texto, as funções de narratário. Ou seja, surge no texto apenas para complementar a ação narrativa. Não possui voz e a sua presença não se materializa no conjunto de fatos que estão sendo narrados. Não deve ser confundido com o autor). Eles tomam uísque e ouvem o Concerto em Si Bemol para Piano e Orquestra, de Tchaikovsky.

As 91 páginas do texto, composto por um único parágrafo, organizam uma exposição de motivos inflamada por litros de intolerância e falta de bom senso. Embora, o que está mesmo em falta é outra coisa: boa educação. O verborrágico Edgardo Vega não possui um mínimo de urbanidade ou de consciência social. Sua metralhadora giratória não perdoa nada e ninguém.O ódio alimenta o discurso: (...) estou aqui depois de dezoito anos, voltei apenas para constatar que fiz muito bem em ir embora, que o melhor que pode ter acontecido comigo foi sair desta miséria, que este país é uma alucinação, Moya, só existe pelos seus crimes, por isso agi de forma correta ao partir, ao mudar de nacionalidade, em não querer mais saber mais nada do país, foi a melhor coisa que poderia ter acontecido comigo, me disse Vega.

Sem dar chances aos vínculos afetivos, Edgardo Vega despeja os piores insultos à cerveja produzida no país, à comida típica de El Salvador (“pupusas”), às equipes de futebol, aos políticos, aos militares, ao irmão, à cunhada, à empregada do irmão e da cunhada, aos sobrinhos, aos amigos do irmão. Como se não bastasse, fala mal dos monumentos, do transporte público, do colégio onde estudou (e, por extensão, dos irmãos maristas, que dirigem a instituição educacional). Nada escapa das camadas de fel que vai espalhando pelas páginas da narrativa. Se essa situação não fosse ridícula, proporcionando alguns momentos bastante engraçados, provavelmente seria insuportável – e obrigaria a interrupção da leitura. Ninguém tem paciência com aqueles que escolhem o pessimismo extremado como razão de vida.

Nas últimas páginas, Edgardo Vega revela o único elemento capaz de lhe causar algum tipo de afeição sincera: o passaporte canadense, documento que transforma em uma espécie de rota de fuga do ambiente que detesta e o oprime.

P.S.: Seguindo pela mesma estrada, mas rejeitando o modelo instituído por Thomas Bernhard, dois outros escritores latino-americanos merecem atenção – quando o tema é o desprezo pelo país que nasceram: o brasileiro Diogo Mainardi (principalmente em Contra o Brasil) e o colombiano Fernando Vallejo (A Virgem dos Sicários e O Despenhadeiro).


TRECHO ESCOLHIDO


Já no ápice do meu delírio, Moya, imaginava o pior: que o meu passaporte canadense tinha caído no bar ou na boate e que eu teria problemas enormes para conseguir um novo documento, me disse Vega. Eu suava, as minhas mãos tremiam, a história me deixava prestes a arrebentar. Gritei a meu irmão que o meu passaporte canadense não estava dentro do carro, deveríamos voltar imediatamente aos dois antros pelos quais passamos. Meu irmão me falou que ele procuraria, eu precisava me acalmar, não havia motivos para me preocupar, logo encontraríamos o meu documento. Um imbecil desses, Moya, pedindo que me acalmasse. Eu me afastei para que ele procurasse na parte de frente do carro, me disse Vega. Estava prestes a estourar, meus nervos não aguentavam mais, prestes a urrar e bater em alguém porque tinha perdido o passaporte canadense e a culpa era do meu irmão e desse crioulo, por ter aceitado o convite desses seres sórdidos para sair à noite e comer alguém, estava prestes a estourar quando meu irmão deu um grito de alegria: “Encontrei.” E lá estava, Moya, a mão de meu irmão me alcançando o passaporte canadense, o sorriso idiota do meu irmão por trás da mão com o passaporte canadense, que tinha caído sem que eu percebesse quando entrei no carro para fugir da asfixiante discoteca onde o crioulo dono de ferragem havia me deixado tonto com sua verborragia ao relatar suas aventuras sexuais extraordinárias, me disse Vega. Agarrei o passaporte de sua mão e, sem falar uma palavra, sem nem olhar para eles, corri até um taxi estacionado alguns metros adiante. Saí dali como se estivesse sendo perseguido pelo diabo, Moya. E não consegui me acalmar antes de entrar no quarto da casa de meu irmão e entrar debaixo dos lençóis com a certeza de que meu passaporte canadense estava seguro sob o travesseiro, me disse Vega. O pior susto de minha vida, Moya. Inclusive, durante o trajeto entre o bordel e a casa de meu irmão no taxi, fiquei folheando meu passaporte canadense, constatando que aquela pessoa na foto era eu, Thomas Bernhard, um cidadão canadense nascido, 38 anos atrás, em uma cidade asquerosa chamada San Salvador. Isso eu não contei, Moya: não apenas mudei de nacionalidade como também mudei de nome, me disse Vega. No Canadá, não me chamo Edgardo Vega, um nome horrível, por sinal, um nome que para mim só me faz recordar o bairro La Vega, um bairro execrável onde me assaltaram quando eu era adolescente, um bairro antigo que nem sei se ainda existe. Meu nome é Thomas Bernhard, me disse Vega, um nome que peguei emprestado de um escritor austríaco que admiro e que, com certeza, nem você nem os outros imitadores dessa infame província conhecem. 

quarta-feira, 30 de março de 2016

CORPOS DIVINOS

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Em momentos conturbados, a literatura possui valor de documento. Ao retratar Cuba e, especificamente, Havana, entre os anos de 1957 e 1959, Guillermo Cabrera Infante, em Corpos Divinos, seu último romance – literalmente –, traça um painel do final do governo Fulgêncio Batista e da ascensão dos revolucionários de Sierra Maestra. Em paralelo, recupera – em cenas muito engraçadas –, suas obsessões mais significativas (as mulheres, o jazz, os filmes dos anos 50).

Corpos Divinos não tem aquele tom cortante de Três Tristes Tigres ou Havana para um Infante Defunto, mil trocadilhos ecoando a todo instante, como se a prosa fosse uma brincadeira em que as letras trocam de lugar dentro das palavras e as palavras dançam dentro das frases. Significados que não deveriam estar lá (mas que estão) surgem diante dos olhos atônitos do leitor. O que se lamenta é que poderiam estar presentes em maior quantidade. Como os originais do romance ainda estavam sendo revisados quando Cabrera Infante faleceu, há a possibilidade de que ele, um perfeccionista, talvez suprimisse alguns trechos ou incluísse outros. É fato conhecido que costumava trabalhar com diversas versões de seus textos, produzindo alterações significativas nos manuscritos antes de entregá-los para a editora.

Guillermo Cabrera Infante  (1929-2005)
(...) nestas memórias em que desejo celebrar todas as mulheres que passaram por minha vida naquele época (...), diz, em algum momento, o protagonista-narrador inominado de Corpos Divinos. Mas não são somente as mulheres que “passaram” pela vida, quer dizer, pelas páginas do romance. Todos os personagens da narrativa (celebridades, subcelebridades, anônimos) aparecem em cena se deslocando de um lugar para outro. Há um constante ir e vir pelas ruas, praias, salas de aulas, pensões, hotéis, cinemas, teatros, boates, estúdios de fotografias (principalmente no de Alberto Korda). Havana é uma festa – inclusive por que conta com a presença de Ernest Hemingway, que aparece várias vezes no texto, sempre com um copo na mão (vodca, daiquiri, mojito), e que, em momento estrela do espetáculo, ocupa várias páginas do livro, durante a gravação de uma das cenas de uma das adaptações de O Velho e o Mar para o cinema. Enfim, em Corpos Divinos, ninguém consegue ficar parado. Nem mesmo o narrador, que oscila entre a subversão política e as dezenas de mulheres que cobiça, corteja, seduz, leva para a cama. Desafortunadamente, nessas duas atividades amorosas, alguns finais não podem ser considerados como felizes. Não se pode ganhar sempre, diria algum cínico com pretensões filosóficas.

Nas primeiras 400 páginas (o livro tem 619), o romance se assemelha a um esboço canhestro de crítica social, a vida privada cubana sendo desvelada pelas mãos de um escritor talentoso, mas que parece estar se repetindo. A sensação de déjà vu é constante – principalmente para o leitor que já transitou por outros textos de Cabrera Infante. Nas histórias ilustradas de um grupo de amigos (Franqui, Adriano, René, Silvio, Branly, Alberto, Jesse, e outros menos cotados), o sexo é o denominador comum. O diferencial surge quando as questões políticas tomam conta da narrativa. O ritmo lento, quase sonolento, é substituído pela urgência descritiva. O quadro dramático adquire cor, intensidade e dinamismo – principalmente nos episódios em que os personagens se reúnem para conspirar. É um tempo em que as pessoas precisam ter discrição política, para não serem arrastadas pelas armadilhas que estão espalhadas em cada esquina da capital cubana. É um tempo em que as amizades são colocadas à prova, o amigo de infância transformado em governista ou em preso político.

Camilo Cienfuegos (esq) e Fidel Castro (centro)
O protagonista-narrador, jornalista, casado, mulherengo, contrário ao governo de Batista, vai costurando histórias do passado no presente narrativo. Surge um inventário ácido, desses que não poupam ninguém. Simultaneamente, o otimismo do Don Juan cubano, manifesto nas primeiras páginas, vai se transformando em desalento. Um exemplo básico pode ser visualizado na cena em que, logo após a fuga de Batista, ocorre uma invasão na casa do coronel do exército, localizada ao lado do local em que o protagonista-narrador mora. Quando ele tenta impedir o barbarismo, a turba o ameaça. Foi necessário chamar o exército para impedir uma tragédia maior: (...) fiquei em casa pensando nas ironias da psicologia de massas: a gentalha dos fundos, que resolvera se agrupar na entrada da casa do coronel no dia em que Batista veio visitá-lo e que deram vivas a ele, era a mesma que, havia pouco, nos acusava de batistianos por sermos contra o saque e a pilhagem da casa do coronel. Era a minha primeira experiência com as mutações que a história impinge às massas – mas não seria a última.

Há um constante desfilar de personagens históricos pela narrativa (Fidel Castro, Ernesto “Che” Guevara, Camilo Cienfuegos). São os novos heróis da História. O protagonista-narrador, figura secundária nesse cenário, apenas observa e relata (para o leitor) o que ocorre nesses primeiros dias de confusão, de disputa pelo poder. Apesar da economia de detalhes sórdidos, fica claro que muitos equívocos foram cometidos. Não há revolução sem sangue.

Nas últimas páginas, a melancolia prevalece. Os sonhos de um país democrático se esfumaçam. A liberdade se transforma em uma figura de retórica. E o ditador deposto é substituído por um novo déspota. Não há salvação no reino político.


TRECHO ESCOLHIDO


Por aqueles dias ouve um lance de bravura em relação a uma mulher, de parte de outro amigo, René de La Nuez (René e Silvio talvez tenham sido meus melhores amigos daqueles tempos), mas desta vez não houve confronto com um mafioso, e sim um encontro com Eros, pura e simplesmente. Fazia tempo que René andava atrás de Sigrid Gonzáles (ou melhor, que Sigrid estava atrás de René, pois ela sempre fora a fim de conquistá-lo, ainda que ele pusesse em risco seu cargo de professor de arte dramática ao sair com uma aluna: os encontros eram sempre secretos), e nesse dia, quase glorioso para todos (a tarde radiante de uma tardia primavera cubana, com o sol saindo por entre nuvens espessas depois que a chuva clareou a atmosfera, o ar abafado amenizado pela chuva do meio da tarde), porém mais do que glorioso para René, que nesse dia estava determinado a se deitar com Sigrid. Não sei se ele conseguiu no mesmo dia ou um pouco mais tarde, mas lembro de estar na entrada do cine Radiocentro me despedindo de René, que ia se encontrar com Sigrid no restaurante La Palmera, a apenas duas quadras dali, eu dando conselhos de última hora de como tratar uma virgem (era evidente que Sigrid, aos dezesseis anos já completos, ainda o era), para não fracassar nesse primeiro encontro, já que René padecia de vários males sexuais causados, evidentemente, pela timidez: ejaculação precoce e pouco tempo de ereção, que combatera nos dias em que ia para a cama com a horrível Dulce Atós (que eu chamava tanto de Dulce Atroz a ponto de esquecer seu verdadeiro sobrenome) utilizando Yoinbina Hube (acho que é o nome correto da marca) para conseguir uma ereção indubitável, durável, e depois recorrendo à fricção com Nupercainal, que era um anestésico tópico, mediante os quais ele conseguia satisfazer o desenfreado apetite sexual de Dulce Atroz (às vezes eu chegava a dizer que ela tinha duas irmãs, chamadas Dulce Aramis e Dulce Portos, as Três Mosquehetairas, Pornós, Atroz e Amamis, sem esquecer uma possível quarta irmã, D’Artdemain), mas agora, hoje, tinha certeza de que ele não ia precisar da ajuda de sua farmacopeia, que René transformou em motivo de piada (nós, em Cuba, pelo menos meus amigos, fazíamos graça de tudo, mesmo da realidade mais dolorosa, e assim superávamos o lado terrível do problema por meio do riso. Eu, pelo menos, fazia, e por isso não me aproximei dos problemas alheios com a devida distância, intimamente, pois sempre havia a distância do gracejo...).