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segunda-feira, 22 de novembro de 2021

DANIEL LUCENA (1960 - 2020)


Louise Lucena, Daniel Lucena, Francisco José Soler de Matos
e Valéria Lucena em algum festival estudantil de música.  


No passado distante, talvez entre 1975 e 1977, fui colega do Daniel Lucena no Colégio Industrial de Lages (CIL). Não posso dizer que éramos amigos. Embora estudássemos na mesma sala, conhecidos me parece mais adequado. Mas isso provavelmente é culpa minha, sempre fui arredio a certas demonstrações de afeto. Além disso, conversávamos muito pouco, provavelmente porque tínhamos preocupações divergentes. Ele demonstrava grande interesse pela música (fazia parte de uma banda, dessas que se apresentavam em festivais) e eu passava todo o tempo livre na Biblioteca Pública, lendo e escrevendo.

Estivemos próximos em uma ocasião em especial. As professoras de português do CIL, Vânia Albuquerque e Célia Regina Ranzolin, inventaram um concurso literário. Não sei se desejavam movimentar a vida dos estudantes ou se estavam entediadas com o esquema quadro-negro e decoreba que caracterizava o ensino formal da época. Nós dois, além de dezenas de outros alunos, nos inscrevemos na competição – que foi realizada no Salão Nobre do CIL (que também era a sala de recreação). Convidaram o Nereu de Lima Goss (1924–2004) para ser um dos jurados. Talvez outras pessoas, além das professoras, fizessem parte da banca julgadora, mas não me recordo de ninguém.

Daniel apresentou uma proposta muito diferente da minha. Ele apostou em uma crônica satírica sobre o ensino profissionalizante. Eu escrevi um poema que defendia a consciência social em um mundo que (na minha visão) estava em ruínas. Felizmente, para o bem da literatura, as duas “obras de arte” não existem mais.

A parte chata da programação estava na apresentação do trabalho. A vítima precisava subir em um estrado e ler o texto diante de quase toda a escola. Exigia-se boa dicção e simpatia. Nisso nós também nos diferenciamos: ele era um sujeito extrovertido, que não tinha medo da plateia; eu, tímido, mal consegui ler o poema, queria era fugir daquele lugar o mais rápido possível.

Depois de deliberarem sobre a qualidade do material apresentado, os jurados resolveram premiar os nossos escritos. Não lembro qual foi o prêmio. Talvez um ponto a mais na média mensal. Tenho certeza que não foi dinheiro. Também fomos publicados no jornalzinho da escola (editado pelo Centro Cívico), que era uma folha A4 dobrada ao meio, mimeografada a álcool. 

Uns dois ou três semestres depois, deixei o CIL no meio do ano e fui tentar resolver minhas crises pessoais em outro lugar. Possivelmente, Daniel  terminou o curso secundário no CIL.

Fiquei muito tempo sem ter notícias dele. Em algum momento, vários anos depois, e não sei precisar quando, descobri que era o vocalista e o principal compositor do Expresso Rural (provavelmente o grupo musical mais importante da história de Santa Catarina). Mas, quase nada sei sobre como isso se tornou possível.

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Fui, dia 20 de novembro, ao lançamento de Algum caminho que me leve ao sul, a biografia autorizada de Daniel Lucena, escrito pelo psicólogo Felipe Rigon Borba. O evento aconteceu no Casarão Juca Antunes (esquina das ruas Benjamin Constant e Coronel Córdova) e contou com grande público. Aos poucos a vida cultural da cidade vai retomando o seu rumo.



quarta-feira, 17 de novembro de 2021

MIOSÓTIS E O BETÃO DA PENHA (versão modificada)

 


Vestindo a bombacha suja, arregaçada na perna esquerda, tomando a sua cervejinha básica de toda hora, ali no balcão do bar Grenal, Adalberto Medeiros Silva e Souza, o Betão da Penha, viu Miosótis passar. Quer dizer, naquele momento, ele não sabia que a moça se chamava Miosótis, mas com aquele ar de delicadeza só podia ter nome de flor.

Betão deixou sobre o balcão uma nota de dez reais e, tastaviando, saiu à rua. A mulher tinha desaparecido na multidão. Quer dizer, pela rua caminhavam umas cinco ou seis pessoas, mas nenhuma delas era Miosótis. Como acontece nesse tipo de situação, a ausência instalou uma fenda no peito de nosso herói. Buraco que ele tentou preencher com um Amazonas de cervejas, quando voltou ao balcão do boteco. Só tentou. Um sentimento complicado impediu a inundação. Será possível sentir saudades de uma mulher que lhe era − até aquele momento − estranha?

Betão sentiu medo. Para aquele que anulava os finais de semana domando touro e cavalo, medo era uma palavra difícil de aceitar. E, por mais estranho que isso possa parecer, Betão estava com medo. Medo de se apaixonar.

Foi então que o seu olhar, até aquele instante vago e incerto, se encheu de alegria e esperança. Ele viu, na parede do bar, um cartaz da festa do Pinhão. Não sei se foi a cerveja, o destino ou pura sorte, mas ele teve a premonição, naquele instante, de que Miosótis estaria lá, na festa. Recuperou a consciência e a lucidez. E tomou uma decisão. Iria à festa. Iria encontrar aquela prendinha mimosa qui nem orquídea na encosta da serra, qui nem pelego em noite di inverno, qui nem....

Para comemorar essa decisão, solicitou ao garçom uma garrafa de água mineral. Sem gás. O garçom ficou apavorado com o inusitado do pedido.

Durante a semana, com o olhar de cachorro pidão, Betão aguardou. Aguardou pelo dia da festa. A espera corroeu a alma, atiçou a úlcera que cultivava com carinho e o tornou irritadiço. A isso devemos acrescentar outros horrores: roeu unhas, se alimentou mal, empalideceu. Como um personagem romântico, sofreu de amores.

No sábado, por cima da camisa de seda amarela, fez questão de usar um lenço colorado. E assim vestido, como um piá que vai para a primeira comunhão, esticou as canelas até o Parque de Exposições do Conta Dinheiro.

Mal chegou lá, encostou-se no primeiro balcão que viu e, pra firmá o purso e diminuí o nervoso, pediu um liso de cachaça. Depois, tomou uma cerveja − para rebater.

E teria ficado ali durante uma eternidade se não tivesse encontrado um amigo de infância. Começaram a contar causo dus antigamente. Betão se distraiu e a conversa ficou loca di especiar, qui nem dinhero achado.

Depois de umas dez cervejas e duas porções de linguiça frita, Betão foi procurar pela futura namorada. Queria conquistar aquele coraçãozinho de gazela.

No quiosque do Gervásio pediu um engradado de cerveja e disse, em alto e bom tom, para quem quisesse ouvir, que o amor precisa ser comemorado como uma dádiva divina. Em seguida, mandou distribuir pra xiruzada macanuda metade das ampolas. A outra metade fez corredeira na garganta de Betão. Pelo entusiasmo, poder-se-ia dizer que o cara estava disposto ao crime.

Isso era apenas aparência – tanto que Betão estava bebendo para afogar as mágoas. Em sua mente, a vida parecia letra de bolero. Só faltava ouvir as vozes de Lucho Gatica e Altemar Dutra: El día que me quieras / la rosa que engalana se vestirá de fiesta con su / mejor / color.

Pediu mais alguns quilos de cerveja, vários centímetros de cachaça e diversas coxinhas de galinha (uma gota de óleo escorreu pela camisa). Algum tempo depois, debruçado sobre a mesa de metal, babando ligeiramente, entrou em coma alcoólica.

Foi nesse instante que Miosótis, na companhia de amigos, sentou-se próxima da mesa onde o esqueleto de Betão da Penha roncava. Com voz de puro veludo, a garota pediu um guaraná diet. E, intimamente, lamentou não ter namorado.

 

domingo, 7 de novembro de 2021

DISTRAÍDO

 


Sofro de distração. Algumas vezes pensei em pedir ajuda especializada para, no mínimo, tentar entender o que está acontecendo. Enquanto isso, acrescento no currículo várias confusões e encrencas − algumas absolutamente ridículas. Um amigo, em momento de irritação e mau humor, disse que sou tão alienado em determinadas situações que – se um dia o mundo acabar – vou perder o espetáculo.

Diferente de alguns distraídos clássicos, minha patologia nunca passou pela humilhação de usar sapatos (ou meias) diferentes. Tampouco precisei amarrar fio de barbante (ou de linha) nos dedos para recordar alguma coisa importante. Jamais saí à rua faltando botão na camisa. Sempre tirei os óculos antes de ir para o banho. Em tempo algum entrei na sessão errada de cinema. Ah, consegui evitar o vexame que é esquecer o lugar onde o carro está estacionado (embora isso não seja vantagem: nunca tive carro e não sei dirigir).

O meu problema sempre foi de outra (des)ordem: nomes, datas, rostos. Repetidamente esqueço o dia de vencimento das contas – o que me causa problemas com multas. Raras vezes consigo recordar do rosto das pessoas que me foram apresentadas na semana anterior. Certa vez quase viajei para Florianópolis sem documentos e dinheiro (a carteira ficou em cima da mesa e só percebi a tragédia dentro do táxi). Prometo escrever textos e só percebo a proximidade do “dead line” umas duas horas antes (nessas situações, pedidos de desculpa sempre se mostraram insuficientes). Raramente me lembro dos aniversários (irmãos, sobrinhos, amigos). Sou um desastre na arte cavalheiresca das boas maneiras sociais e familiares. Quem me salva é a agenda do telefone celular, programada para avisar que o circo vai pegar fogo se algo não for feito em regime de urgência.

O vexame maior ocorre em relação ao nome das pessoas. É um problema sério para quem trabalha com cultura (e jornalismo). No meio de alguma conversa... você olha para a vítima e não consegue lembrar se o sujeito se chama Joaquim ou Adalberto. É o horror. Então, para tentar diminuir a agonia, é preciso improvisar e tirar da manga alguma palavra mágica: senhor, doutor, mestre,... E fingir que tudo está bem. 

Um exemplo clássico (e constrangedor) ocorreu quando encontrei alguém que estudou comigo. Fazia tempo que não o via. Por convenção, costumo tratar todo mundo pelo primeiro nome. Depois de conversar um pouco sobre os velhos tempos, me despedi. Abraços, Paulo! E fui embora. Coincidentemente, encontrei “Paulo” várias vezes depois disso. Estaria tudo bem se ele não tivesse perdido a paciência: Meu nome é Júlio. Meu primo, que também estudou conosco, é que se chama Paulo. Então, não esqueça: eu sou o Júlio! Passar vergonha não tem preço!

Quando preciso ir ao supermercado, faço uma lista do que devo comprar. Muitas vezes a esqueço em algum lugar entre a geladeira e o microondas. Então, trago para casa produtos que não são necessários. E aqueles que deveria ter comprado ficam para trás. Resultado: nova visita ao templo do consumismo. 

Vivo caminhando nas nuvens, como diz a sabedoria popular. Como não tenho aptidão marqueteira para transformar minhas deficiências em algo positivo, muitos adjetivos ofensivos (antipático, esnobe, entre outros) costumam ser disparados em minha direção. Alguns acertam o alvo.

Na Internet, escuto algumas vezes um sucesso antigo, cujos versos eu deveria aceitar como um resumo de minhas bagunças: O acaso vai me proteger / Enquanto eu andar distraído.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

DESAFI(N)ANDO

 


Dizem que não há desgraça pior do que nascer desafinado. A pessoa pode acreditar em extraterrestres, ser viciada no jogo do bicho, praticar o veganismo ou pior, muito pior, dominar a trigonometria, são os azares da vida, ninguém está livre desses acidentes. Mas, desafinar, ah, desafinar é um defeito imperdoável.

Basta uma nota musical fora do tom e o sujeito se transforma em pária social. A harmonia desaba, o caos se instala, o universo mostra as suas ruínas. É algo que se aproxima do horror que existe nos dramas gregos, nos tsunamis, na derrota do império bizantino em 1453, no gol do time adversário aos 50 minutos do segundo tempo.

Ninguém se compadece dos desafinados. Ao contrário. Querem retirá-los da festa. Dizem que quem não sabe brincar não deve descer para o playground. Alegam que é de conhecimento amplo, geral e irrestrito que a vida fica mais tranquila quando se segue as instruções contidas na partitura, a beleza expressa no conjunto de instrumentos e vozes uníssonos. Abençoados sejam os bem-comportados, aqueles que não encontram maldade no mundo!

Condescendente, tentando acalmar os ânimos, alguém lembra que no peito dos desafinados também bate um coração. Bobagem. Tolice. Asneira. Disparate. Sandice. Sobram adjetivos. E nenhum é subjetivo. Os corações desafinados são corações mais maltratados do que os corações maltratados que encontramos pelas ruas da cidade. Ninguém deseja esse tipo de sofrimento. Ou deseja? Inúmeros boleros, tangos e tragédias parecem dizer que sim. E isso soa estranho.

Pois é, o amor se parece com música desafinada. Diversos elementos concorrem para esse abismo: os desentendimentos entre a soprano e o tenor, o gozo desencontrado, a flutuação do dólar, o amargor do mel, as fronhas de listras que não combinam com os lençóis floridos. Parece que há uma guerra em curso e que tudo gira em torno de migalhas e estilhaços. Às vezes o melhor a fazer é trocar a playlist do Spotify.

O que sei é que está cada vez mais difícil de viver sem desafinar. Em algumas ocasiões o desafio ocorre quando estamos tentando batucar caixa de fósforos, num desses sambas de fundo de quintal. O ritmo se esfarela nos dedos sem musicalidade. Em outros momentos, basta atravessar a rua – o lado oposto da calçada fica distante quando a música urbana parece não se importar com a vida.

Em outro canal desse dois prá lá dois prá cá é possível encontrar – em rota de colisão – a mentalidade dissonante. Torquato Neto disse da necessidade de desafinar o coro dos contentes. Carlos Drummond de Andrade, concordando com o piauiense, defendeu a ideia de que uma das tarefas da poesia (e do poeta) é ser gauche na vida. Nessa (des)ordem, eles não estão sozinhos. Étienne de La Boétie (amigo de Michel de Montaigne) era contra o discurso da servidão voluntária. Henry David Thoreau pregava a desobediência civil – uma forma de dizer não ao comportamento de manada.

Em uma das reprises do espetáculo, Nelson Rodrigues está cantarolando afinadíssimo – que toda unanimidade é burra.     

 

domingo, 24 de outubro de 2021

MINHA MÃE, A INQUIETA

 

Dona Vina (1939-2021), em algum lugar distante.


Quando põe o pé na estrada, ele obedece a uma força que, surgida do ventre e do âmago do inconsciente, lança-o no caminho, dando-lhe impulso e abrindo-lhe o mundo como um fruto caro, exótico e raro.                                       (Michel Onfray)


Minha mãe tinha espírito nômade. Ou cultivava – amorosamente – alguma espécie de distanciamento do mundo gregário. Essa coisa de fixar raízes era uma ideia estranha à sua vida (que estava sempre em mutação). Nunca pensou duas vezes antes de se deslocar. Quando não era possível fazer a mudança, trocava os móveis de lugar – e fingia que estava morando em outra casa.

Foram tantas as trocas de endereço que não me lembro de todas. Entre as mais importantes destacam-se as do bairro Brusque, onde residiu em pelo menos quatro oportunidades. Três na Carlos Vidal Ramos e outra na Cruz e Souza. Talvez se possa incluir nessa soma uma quinta ocasião, se valer a proximidade geográfica com a parte final da rua Coronel Córdova (quase na Av. Dom Pedro II). Duas vezes no bairro Universitário (antigo Aeroporto Velho): José Berlim e Germano Magaldi. No Coral, duas vezes: XV de Novembro e São José. Quatro vezes no Centro: Manoel Thiago de Castro, Irmã Laurinda, Sebastião Furtado e Lauro Müller. Também morou nos bairros Petrópolis, Popular, Santa Rita, Vila Nova, Copacabana, Caça e Tiro e Morro do Posto.

A média de estadia em algum desses lugares não excedia aos dois, três anos. Algumas vezes ela acordava com bicho-carpinteiro, disposta a fazer arte, e só sossegava depois de percorrer todas as imobiliárias, investigando quais imóveis estavam disponíveis para aluguel. Também telefonava para os amigos e conhecidos com o mesmo propósito. Às vezes, ia visitar os parentes  mas o que queria mesmo era ver se encontrava alguma placa de aluga-se, talvez fosse a possibilidade de morar em outro lugar, de preferência longe de onde estava. Muitas vezes, a transição entre um endereço e outro era imediata. Certa vez, ao visitá-la, encontrei a casa vazia – nem as lâmpadas sobraram para contar o que tinha acontecido. Fez a mudança e não avisou ninguém. Demorei uns dois dias para descobrir o novo paradeiro.

O movimento se opõe ao sedentarismo e afasta a estagnação mental. Creio que era isso que ela queria dizer instintivamente – mas por vias transversas (e travessas). Simultaneamente, não consigo perceber alguma base filosófica nessa peregrinação pelos quatro cantos da cidade. Algum psicólogo de botequim poderia dizer que, ao adotar uma proposta itinerante, ela estava fugindo de alguma coisa, talvez algum medo (físico, social, imaginário), talvez fosse apenas o exercício de negação das obrigações que acompanham o mundo convencional. Não tenho certeza da correção desse tipo de diagnóstico – que me parece artificial e ligado à etologia dos predadores. O que posso dizer é que, se ela tivesse nascido em Estados Unidos, possivelmente gostaria de morar em um trailer, a estrada como horizonte, o vento beijando o seu rosto. 

Quando cansava da cidade, viajava. Demorava seis meses, um ano, em terras distantes. E que ninguém sabia exatamente onde ficavam. Deixava tudo para trás: filhos, gatos, pertences. Às vezes, poucas vezes, mandava um cartão postal, um bilhete sem informações relevantes. Ou telefonava para dizer que tudo estava bem, que não estava com pressa para regressar.

Voltava revigorada – como se tivesse passado uma temporada em um spa ou em turnê turística pelo Mediterrâneo. Sempre interessada em recomeçar – como se o encontro com o novo inventasse um propósito para a vida.