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domingo, 24 de outubro de 2021

MINHA MÃE, A INQUIETA

 

Dona Vina (1939-2021), em algum lugar distante.


Quando põe o pé na estrada, ele obedece a uma força que, surgida do ventre e do âmago do inconsciente, lança-o no caminho, dando-lhe impulso e abrindo-lhe o mundo como um fruto caro, exótico e raro.                                       (Michel Onfray)


Minha mãe tinha espírito nômade. Ou cultivava – amorosamente – alguma espécie de distanciamento do mundo gregário. Essa coisa de fixar raízes era uma ideia estranha à sua vida (que estava sempre em mutação). Nunca pensou duas vezes antes de se deslocar. Quando não era possível fazer a mudança, trocava os móveis de lugar – e fingia que estava morando em outra casa.

Foram tantas as trocas de endereço que não me lembro de todas. Entre as mais importantes destacam-se as do bairro Brusque, onde residiu em pelo menos quatro oportunidades. Três na Carlos Vidal Ramos e outra na Cruz e Souza. Talvez se possa incluir nessa soma uma quinta ocasião, se valer a proximidade geográfica com a parte final da rua Coronel Córdova (quase na Av. Dom Pedro II). Duas vezes no bairro Universitário (antigo Aeroporto Velho): José Berlim e Germano Magaldi. No Coral, duas vezes: XV de Novembro e São José. Quatro vezes no Centro: Manoel Thiago de Castro, Irmã Laurinda, Sebastião Furtado e Lauro Müller. Também morou nos bairros Petrópolis, Popular, Santa Rita, Vila Nova, Copacabana, Caça e Tiro e Morro do Posto.

A média de estadia em algum desses lugares não excedia aos dois, três anos. Algumas vezes ela acordava com bicho-carpinteiro, disposta a fazer arte, e só sossegava depois de percorrer todas as imobiliárias, investigando quais imóveis estavam disponíveis para aluguel. Também telefonava para os amigos e conhecidos com o mesmo propósito. Às vezes, ia visitar os parentes  mas o que queria mesmo era ver se encontrava alguma placa de aluga-se, talvez fosse a possibilidade de morar em outro lugar, de preferência longe de onde estava. Muitas vezes, a transição entre um endereço e outro era imediata. Certa vez, ao visitá-la, encontrei a casa vazia – nem as lâmpadas sobraram para contar o que tinha acontecido. Fez a mudança e não avisou ninguém. Demorei uns dois dias para descobrir o novo paradeiro.

O movimento se opõe ao sedentarismo e afasta a estagnação mental. Creio que era isso que ela queria dizer instintivamente – mas por vias transversas (e travessas). Simultaneamente, não consigo perceber alguma base filosófica nessa peregrinação pelos quatro cantos da cidade. Algum psicólogo de botequim poderia dizer que, ao adotar uma proposta itinerante, ela estava fugindo de alguma coisa, talvez algum medo (físico, social, imaginário), talvez fosse apenas o exercício de negação das obrigações que acompanham o mundo convencional. Não tenho certeza da correção desse tipo de diagnóstico – que me parece artificial e ligado à etologia dos predadores. O que posso dizer é que, se ela tivesse nascido em Estados Unidos, possivelmente gostaria de morar em um trailer, a estrada como horizonte, o vento beijando o seu rosto. 

Quando cansava da cidade, viajava. Demorava seis meses, um ano, em terras distantes. E que ninguém sabia exatamente onde ficavam. Deixava tudo para trás: filhos, gatos, pertences. Às vezes, poucas vezes, mandava um cartão postal, um bilhete sem informações relevantes. Ou telefonava para dizer que tudo estava bem, que não estava com pressa para regressar.

Voltava revigorada – como se tivesse passado uma temporada em um spa ou em turnê turística pelo Mediterrâneo. Sempre interessada em recomeçar – como se o encontro com o novo inventasse um propósito para a vida.

2 comentários:

  1. Incrível a tua mãe, Raul! Meus pêsames pela morte dela.

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  2. Que texto, que história linda!! Que mulher de fibra, foi sua mãe! Corajosa, sonhadora e mais incrível ainda," matava à unha , seu desejo cigano de estar aqui e acolá! Ela conseguiu largar tudo e todos ...pra ser feliz! Viver sua vida!! Parabéns, quão lindas deve ser suas andanças por este Céu de meu Deus!!!

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