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sexta-feira, 21 de abril de 2023

TIO ZULMIRO NÃO SE CHAMAVA ASSIM

 


Dizem que é nos momentos de crise que surgem as melhores oportunidades comerciais. Independente da veracidade dessa afirmação, a pandemia despertou o espírito empreendedor de um grupo de amigos. Sem dinheiro para a sagrada cerveja de todo dia e impedidos de fazer fiado no Bar do Portuga, precisavam encontrar um fonte de renda que, na pior das hipóteses, minimizasse a situação. Foi, talvez como uma prova de desespero, que resolveram montar uma empresa fantasma para vender um produto de boa aceitação no mercado naquele momento.

Como não possuíam o conhecimento necessário para ter êxito nesse tipo de atividade mercantil, precisaram agregar novos sócios. E, claro, repartir os lucros. Perder os anéis e conservar os dedos – eis a primeira lição prática do mundo dos negócios. No entanto, como acontece com aqueles que acreditam no poder das ideias, essa sensação desapareceu quando perceberam que a proposta era lucrativa, teriam bons dividendos e ninguém ficaria à míngua.

O que eles estavam vendendo? Nada muito refinado. Apesar de ser bastante perigoso. Com auxílio de uma gráfica (que imprimiu alguns formulários) e de um funcionário do hospital (que forneceu máscaras, álcool gel e aventais), a firma anunciou (pela Internet) que estava recolhendo (em domicílio) material para testes de Covid-19. O que não contaram para as vítimas, digo, para os clientes, é que tudo era encenação. Não havia a mínima possibilidade de fornecer diagnóstico – ou salvar vidas.

O medo da doença fez parceria com a falsa sensação de segurança. Essa era a mola-mestra do negócio. Mas, como tudo possui prazo de validade, a mina de ouro secou depois de algum tempo. E foi substituída por outra, menos perigosa, menos rentável, e que comprova a força do misticismo em situações-limite. Passaram a vender pulseiras abençoadas por um guru (inexistente). Diziam que o uso do amuleto protegia contra o vírus. O produto obteve sucesso com o público-alvo.   

O desastre surgiu na forma do Covid-19. Alguns dos empresários ficaram doentes. O vírus cobrou caro o que eles ganharam em dinheiro. Como tinham decidido correr o risco, então não foi nada inesperado – mesmo assim, o susto foi grande (para os poucos que sobreviveram).  

Com capítulos curtos, duas, três páginas, Tio Zulmiro não se chamava assim (publicado pela Editora Reformatório) foi construído com uma linguagem leve, repleta de humor. Mesmo nos trechos finais, quando acontece o inevitável, a narrativa foge do melodrama barato. Outra característica positiva está no uso contínuo de diálogos – acelerando a fluidez do texto e permitindo que o leitor se divirta com o amadorismo do grupo.

Com sabor de crônica, sem perder o registro documental de um momento histórico, e tomando o cuidado de indicar que a lei de Gerson (levar vantagem em tudo) não funciona em algumas situações, o romance produz uma instigante reflexão sobre a ambição. Simultaneamente, como se fossem questões igualmente importantes, aparecem no texto alguns comentários críticos sobre o governo e a religião.      

No parágrafo final do capítulo XVII, o narrador, que até então se mantinha distante (como convém aos observadores da trama), revela que é sobrinho de Zulmiro – talvez o personagem mais divertido da narrativa e que perdeu a identidade, ou melhor, o direito de usar o seu nome verdadeiro, Reynaldo, porque passou toda a sua existência adulta dependendo econômica e emocionalmente de Zulmira, a esposa. Cabe ao sobrinho, honrando a memoria de Zulmiro, digo, Reynaldo, transcrever os acontecimentos que lhe foram narrados pelo tio e dar alguma consistência para o homem que, nitidamente, tinha dificuldades no transitar pela vida.

Tio Zulmiro não se chamava assim é divertido e trágico. Uma metáfora sobre o horror que o capitalismo predatório produz.

 

TRECHO ESCOLHIDO

– Pessoal, essa boca acho que acabou, mas continuo achando oportunidades nessa desgraça do Covid. Andei acompanhando as redes sociais e tem gente vendendo remédios homeopáticos e herbopáticos para prevenir a doença. Isso acho que não dá para a gente fazer, precisa ter pelo menos uma horta ou uma floresta ou sei lá de onde os caras tiram essas coisas. E precisa embalar e tal, e arriscar dar a cara para bater de novo, a polícia pode ir atrás...

Elias não concordou:

– Esse pessoal que vende remédios, digamos, alternativos está na praça há séculos, e nunca soube de algum preso ou até incomodado. Tem até farmácia homeopática por aí, vendendo ao público... Mas, concordo com o Eduardo que a gente não tem, ainda mais agora, como entrar no mercado, não temos insumos, é uma boa ideia desperdiçada.

Eduardo não se deu por achado. Deu um sorriso misterioso:

– Não senhor, você não pegou o pulo do gato. Vamos mudar o foco. Vamos vender pulseiras milagrosas benzidas – tipo João de Deus?

– Não, esse cara não pega mais. Parece até que tá em cana.

– Mas podemos inventar um guru parecido. Não tem gente que toma água milagrosa sei lá de onde? Entendam, está um monte de gente angustiada, sem entender muito bem porque tem que ficar em casa, marido e mulher que nunca se deram bem estão se dando cada vez pior, e ainda por cima aguentando os moleques: se a gente colocar num site que a pulseira de pano milagrosa protege você do Covid com emanações magnéticas a partir da costura azul, e que com ela você pode sair na rua, olha o grande mercado que temos – e sem risco, afinal milagre é religião e religião é livre no Brasil, o presidente até autorizou abrir os templos.


sexta-feira, 14 de abril de 2023

CADA UM NO SEU QUADRADO

 

 


Quaisquer eventos humanos projetam uma espécie de sinuca de bico. Ou seja, uma situação difícil, dessas que exigem alguma habilidade especial ou, em caso de desespero, tirar coelho da cartola.

Ao mesmo tempo, pode ser motivo para grandes comemorações, fogos de artifício, garrafas de espumante e bolo de três camadas. Pasteizinhos variados também serão bem recebidos. 

Mas, como nem tudo que reluz é ouro, cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. As decepções estão incluídas nesse cardápio variado que chamamos de vida e – atenção, senhores passageiros! – a alegria costuma rimar com a ilusão. Criar expectativas é uma das formas mais terríveis de abraçar a frustração.

Deixando de lado as frases de autoajuda e a noção de que estar em contradição faz parte da brincadeira, o dia a dia confirma que a rapadura é doce, mas não é mole. Enfim, devagar se vai ao longe e não se deve cantar de galo no terreiro alheio. Estatisticamente, as chances de dar com os burros n’água supera as probabilidades de ganhar na Mega-Sena.

Nada mais significativo do que um dia depois do outro – com uma noite no meio. De grão em grão, a galinha enche o papo. E fugir de qualquer assunto espinhoso pode ser uma estratégia racional, gato escaldado tem medo de água fria – ou, em outra versão, se for do agrado do freguês, cachorro mordido por cobra foge até de linguiça.

Pois é, encher linguiça é uma arte e o mundo está repleto de arteiros. O que faz falta são os artistas, aqueles que criam tempestades em copos d’água e mostram que, em casa que possui chaminé, há possibilidade de existir fogo. Mesmo que seja fogo-fátuo. Por isso, urge ter cautela quando puxar a brasa para a sua sardinha. É uma das melhores maneiras de ser queimado (cancelado, em linguagem castiça, porém contemporânea).

De qualquer forma, nas palavras de um filósofo que está destinado ao esquecimento, a corda arrebenta do lado mais fraco, águas passadas não movem moinho, a ignorância flerta com a virtude e, quando nevar em janeiro, surgirá nos céus sinais do apocalipse.

A física quântica e o metaverso explicam (ou complicam) muitas coisas, confirmando que os grandes espetáculos não passam de dramas farsescos. Por isso, cuidado, meu bem / Há perigo na esquina / Eles venceram, e o sinal está fechado pra nós.

Há males que vêm para bem, afirmava o vilão, em um daqueles seriados que passavam na televisão nos sábados pela manhã, em tempos idos e vividos – muitas vezes sofridos. A esperança do espectador sempre foi a de que, ao final do episódio, acontecesse algum plot twist, o abracadabra perfeito, a extinção do mal e a vitória do bem. Na ficção, tudo bem. Na vida real, o buraco é mais embaixo. Sem esquecer que esperar milagre rezando para santo de devoção talvez seja um exagero – embora, convenha-se, o que não mata, engorda.

A soma da experiência humana revela que o tempo – compositor de destinos / tambor de todos os ritmos – costuma indicar que não é possível fazer omelete sem quebrar os ovos. A pressa é a inimiga da perfeição. Como ninguém está matando cachorro a grito, querer mais do que isso é colocar a carroça diante dos bois.

domingo, 9 de abril de 2023

A LUZ DO FAROL

 


Declan está doente. E as três mulheres mais importantes de sua vida (avó, mãe, irmã) estão concentradas em brigar umas com as outras. Provavelmente é esse o motivo que o leva a deixar o hospital em Dublin e passar algum tempo na casa da avó, uma antiga pousada, perto do penhasco de Cush (no condado de Wexford). Mas também pode ser que ele tenha escolhido encenar uma espécie de cerimônia do adeus – momento em que as lembranças do passado (principalmente da infância) estão embaralhadas na angústia de viver um presente tempestuoso. O leitor jamais saberá qual é a versão que possui maior substância, pois os acontecimentos são narrados pelo ponto de vista de Helen, sua irmã.

Durante as noites, o farol, em Tuskar Rock (a 11 km da costa), acrescenta uma espécie de chiaroscuro nessa história em que predomina o rancor. A oscilação da luminosidade – metáfora ambiciosa e que fornece uma chave de compreensão sobre o que aconteceu em outro tempo –, não diminui o fardo, não produz alívio. No entanto, acena com a esperança de que é possível romper, em algum momento, um ciclo que se repete interminavelmente desde a morte daquele que garantia a estabilidade no eixo familiar. Helen e Declan eram crianças quando o pai (ou a figura do pai) desaparece. Essa falta (que se une com outras carências) é determinante para que os filhos se afastem do convívio familiar – e que só retornam à casa da infância para se despedir do passado.

No intervalo dos ressentimentos, Helen descreve, com minúcias, a doença que está devastando o corpo do irmão. Dores incontroláveis, diarreias, insônia, cegueira, falta de apetite. A proximidade com a morte não oferece descanso. Essa situação-limite serve de gatilho para que aflorem inúmeras questões que ficaram pendentes no meio do caminho.

Acompanhando Declan estão dois amigos: Paul e Larry. A aspereza de Paul e a alegria de Larry oferecem um pouco de leveza ao texto e (sempre que possível) algum tipo de trégua na tensão familiar. Algumas cenas que protagonizam são divertidas e contém uma espécie de wit, aquele humor perspicaz que só é percebido pelo leitor algumas páginas depois.     

A luz do farol (São Paulo: Companhia das Letras, 2004) é uma narrativa descritiva, do ponto de vista geográfico. O deslocamento dos personagens pela costa da Irlanda, passando por cidades com nomes estranhos (Arklow, Gorey, Enniscorthy), fornece indicações que provocam estranhamento. É quase um livro On the road. Mas, essa paisagem proporciona uma moldura peculiar para o romance, projetando no ir e vir a ideia de que o desaparecimento daqueles que amamos também faz parte da viagem. Se o leitor for curioso, e estiver atento ao que está sendo narrado, provavelmente consultará o Google Maps para descobrir qual é a distância que separa Dublin de Donegal.

Ao abordar temas contemporâneos (Síndrome da imunodeficiência adquirida, amizade, conflitos familiares), o romance mostra que a literatura pode fornecer um olhar detalhado para alguns dos dramas que constituem esse terreno pantanoso que chamamos de vida.         

  

TRECHO ESCOLHIDO

“Eu não estou atrapalhando”, disse Lilly.

“Bom, eu achei que estava”, replicou Paul.

“Eu sou a mãe dele!”, bramiu Lilly.

Paul deu de ombros. “Ele já é adulto, está com uma dor de cabeça horrível, precisa beber alguma coisa e eu não tenho tempo para esse tipo de histeria.”

“Quer dizer que vocês vão embora?”, indagou Lilly.

“Escute, senhora Breen”, disse Paul, “enquanto Declan estiver aqui, eu não arredo o pé desta casa, tome nota disso. Se estou aqui é porque ele me pediu para vir para cá e, quando me pediu isso, o seu filho usou palavras, expressões e frases não muito edificantes a respeito da senhora, as quais prefiro não repetir. É claro que ele se preocupa com a senhora, ama a senhora e quer ter a sua aprovação. Mas também está muito doente. Por isso, é melhor a senhora parar de sentir pena de si mesma. Enquanto o Declan estiver aqui, eu não saio e o Larry também não. Quando um de nós for embora, os outros também irão, e se não acredita em mim, pergunte ao Declan.”

“O que você quer dizer com ‘palavras não muito edificantes’?”, perguntou Lilly.

“Ele está com quase trinta anos, meu Deus, e tem medo de falar certas coisas à senhora”, disse Paul. “Bolas, não tenho tempo para isso. Larry, você não quer tentar ligar o celular? Será que dá para recarregar a bateria?”

Chorando Lilly foi se refugiar no andar de cima. Helen dirigiu-se ao quarto de Declan e sentou-se na beira da cama.

“O que aconteceu?”, indagou ele.

“A mamãe discutiu com o Paul”, respondeu Helen.

“Ela não devia ter feito isso. Ele é imbatível em discussões, sempre adivinha o que a pessoa vai dizer em seguida”. Declan tampou os olhos com as mãos e estremeceu. “A dor vem em ondas”, disse ele e levantou-se para ir novamente ao banheiro. “Estou me sentindo mal de novo”.


sábado, 8 de abril de 2023

O DIA DO PAI (texto modificado)

 


Domingo, seis e meia da manhã. No melhor do sono, ele sentiu uma mão batendo no ombro.


Simultaneamente, como se fosse o sinal do armagedon, uma voz insistente:


– Pai, você já acordou? Eu já acordei!


– Ah, filho, quero dormir mais um pouquinho, por favor!


Sem esperar pela resposta, o homem virou o corpo para o outro lado, procurando por uma posição melhor. Por um instante, aquela fração de segundo que separa a felicidade do horror, pensou em abraçar o corpo da esposa. Como em todo pesadelo, isso era impossível. Ao seu lado, naquele momento, só existia o vazio e a ausência. Mas isso não era o pior. O menino o estava convidando a abrir os olhos e encarar as crueldades da vida.


– Paiêêêê, já é dia!!! Você precisa levantar!


– Tá!


– Paiê-ê-ê-ê, já é dia!! Tô cum fomi!!!


Armado de toda paciência que conseguiu reunir, ele contou até três mil. Depois, compreendeu a triste sina: sua majestade, “a rainha do lar”, estava em viagem. O palácio, o cetro e o príncipe herdeiro (das dívidas e das dúvidas familiares) tinham ficado sobre a responsabilidade do bobo da corte. Ou seja, ele. Então, só restava relaxar e..., sei lá, não permitir que o circo pegasse fogo – pelo menos até a volta da ilustre consorte (sim, porque naquele instante não havia a menor dúvida de quem era o “com azar”). A “megera”, antes de ganhar a estrada e o bem-bom, o havia atormentado com mil recomendações, uma lista de cuidados com o filho, verdadeiro massacre em forma de ternura. Só de pensar nisso, e nos incômodos que teria se acontecesse alguma coisa com o menino, ele entrou em estado de pânico.


– Pai, tô cum fomi!


Dizendo adeus às ilusões, ele abriu os olhos. Em seguida, quase fulminou o menino com uma paternal dose dupla de rancor. Desistiu no meio do caminho e, da forma mais teatral possível, arriscou a última cartada:


– Você não quer deitar um pouquinho com o pai?


O rapazinho, apesar da pouca idade, não caiu no velho truque do seu “velho” e reagiu em grande estilo; ou seja, gritando:


– Tô cum fomi!!


Naquele momento, precisando manter o controle e a razão, ciente de que nada mais restava senão amaldiçoar a humanidade (em geral) e a esposa (em particular), ele capitulou:


– Tá certo, filho. Já vou levantar.


Sem saber direito o que fazer, armado de coragem, muita coragem, vestiu uma camiseta e uma bermuda. Entre o quarto e o corredor, milhões de bocejos – uns cinco ou seis. Na cozinha, como se fosse um zumbi, não conseguiu encontrar o material básico para poder calar o menino. Sem ter a mínima ideia de onde estava “escondida” a mamadeira, abriu e fechou todos os armários – diversas vezes! Desolado, sentou na cadeira mais próxima e, depois de mais alguns bocejos, disse:


– Meu filho, estamos em apuros!


O menino, sem entender o que isso significava, se aproximou e beijou o rosto do pai. Foi a gota d’água. Então, aquele pirralho, que outro dia fora retirado, pela violência de uma cesariana, da barriga de sua mãe (uma bola de carne roxa, pingando sangue), desprezava as trapalhadas de seu pai e, na maior ousadia, com um simples beijo, transformava em amor todas as tempestades da vida?


Com o orgulho de um atleta que cruza a linha de chegada em primeiro lugar, o pai abraçou o menino. Ficaram unidos uma eternidade (uns dois minutos). Logo depois, ele se levantou, abriu geladeira e, surpresa!, encontrou o leite. Em cima da mesa estavam o achocolatado e a mamadeira. As outras operações (pura alquimia!) foram realizadas no automático. Era como se estivesse pisando em nuvens – e estava!


O resto do dia foi ótimo, apesar do almoço desajeitado em uma churrascaria, do sorvete que melou todo o hemisfério sul, do dinheiro gasto com figurinhas, do passeio no parque, das brigas esporádicas e do afeto explícito. 


Estavam construindo uma educação sentimental muito particular, cheia de cumplicidades.



sexta-feira, 31 de março de 2023

A GELADEIRA, ONTEM E HOJE

 


Algumas questões são difíceis. Entre um tropeção e outro, faz-se necessário tomar uma decisão. Mas,... e sempre existe um “mas” no meio do caminho.  Esse obstáculo pode se manifestar em 5.315 alternativas – todas tangenciando o erro. Depois de exaustivos estudos, noites de insônia e dores de cabeça foi possível concluir que parte das questões essenciais do mundo está concentrada na compra de uma geladeira. E, se o/a ilustre leitor/a me honrar com o prazer de sua companhia, tentarei desvendar essa tese extravagante.


Antes, uma pequena digressão. A sociedade moderna discrimina tudo o que é diferente. Ou o que não estiver na moda. Não adianta tentar manter idiossincrasias particulares – quando menos se espera aparece um chato e pisa no nosso castelo de areia; e pouco importa se passamos a tarde toda construindo aquela bobagem para tentar impressionar alguma vítima. Um exemplo clássico, eternamente presente em minha vida, está no tipo de marginalização que sofrem aqueles que ignoram a indústria automobilística. Muitos de meus amigos jamais me perdoaram por não possuir nem mesmo um fusquinha, por ter dificuldades em distinguir uma Kombi de uma Ferrari e por detestar dirigir (certa vez, evidenciando típica falta do que fazer, frequentei uma autoescola). Em outras palavras, essas insignificâncias conseguiram me transformar em um cidadão de segunda classe. Tudo bem, se a questão se resume em discriminar, lamento informar a quem interessar possa que estou em ótima companhia: índios, sem-terras, sem-tetos, não fumantes, negros e outras “minorias” menos cotadas.


Mas, e a geladeira? Onde é que o eletrodoméstico entra nesta história? Calma, já chego lá! Depois que me separei da mãe de meu filho, lá no século passado, resolvi viver de forma ascética. Ou seja, com o mínimo indispensável. Morando sozinho, e sem muitas preocupações com as questões domésticas, considerei que ter um refrigerador era um item completamente dispensável na minha vida. Um erro terrível. O resultado imediato dessa decisão foi o isolamento social. Amarguei ouvir certas frases: Como é que vou à tua casa, se nem um cerveja gelada você tem para servir? E a palavra gelada vinha envolta no papel celofane do desprezo. Até Mítia (na época, com quatro anos), perguntava: E a geladeira, pai? Pois é, e a geladeira?


Acontece que certo dia (provavelmente o resultado de algum descuido que nunca procurei desfazer) notei que havia uma pequena folga na conta bancária. Sem saber o que fazer com tamanha fortuna, decidi adquirir o que estava faltando para completar a vida burguesa.


Armado de paciência – mas não muita – fui à luta. Primeiro, uma pesquisa de preços. Diferenças astronômicas entre uma loja e outra. O mesmo para as condições de pagamento. Paralelo a isso, aprendi uma lição: não basta ter o dinheiro para poder comprar. Algumas lojas não possuem estoques – é preciso esperar, no mínimo, uma semana pela entrega!


Ansioso para resolver a questão optei por fazer negócio com um estabelecimento em que a funcionária me prometeu posse imediata do objeto ao final daquela mesma tarde. Além disso, aceitaram pagamento em diversas parcelas (sem juros). Foi quase como acertar na loteria. Quase.


Como era dia de brincar de pai exemplar, fui buscar o filho no colégio às cinco horas da tarde. Em seguida, lépidos e faceiros, fomos para casa aguardar a chegada da novidade. Que não chegou. Nem na manhã seguinte. Tampouco recebi algum telefonema explicando a situação.


Furioso, voltei até a loja. Com a cara de pau típica dos incompetentes o gerente me informou que haviam vendido duas vezes o mesmo produto! Desfizemos o negócio imediatamente. De gorjeta, mandei todo mundo plantar batata no asfalto. Com enxada de borracha. Na verdade, os termos que utilizei foram outros e levemente mais ríspidos. Coisa pouca. Bobagens de quem estava com a cabeça quente.


Procurei outra loja. Dois dias depois. Ótima forma de pagamento, entrega em cinco dias, diferença de preço quase insignificante. Arrisquei.


No dia marcado, fiquei aguardando alguma tragédia. Que não veio. Aliás, nem notícias da geladeira. Será que havia sido enrolado, outra vez? Receoso, fui para o trabalho. Na volta para casa, uma das vizinhas que me disse que “ela” estava me esperando no corredor do prédio.

− O moço da entrega estava com pressa. Pediu para que eu a recebesse. Será que fiz mal?


Ignorei a pergunta. A “coisa” estava lá, agasalhada por uma caixa de isopor. Tive uma crise de paranoia: e se estiver estragada? Ou arranhada? Ou... sei eu lá!


Depois, com o carinho que se oferece a uma namorada, a fiz ultrapassar a porta do apartamento. Na manhã seguinte, já estava incorporada ao meu mundo domesticado. E, por algum estranho motivo que não quero entender, passamos a viver um clima de lua de mel.


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O texto acima é antigo, retirei alguns parágrafos e adaptei outros. Algumas das observações refletem a época em que foi escrito. No entanto, mantém um pé no contemporâneo. Comprovei isso recentemente quando precisei trocar o eletrodoméstico. O sistema de entrega melhorou, mas a conversa mole dos vendedores continua igual. Enfim, como dizia um personagem literário, tudo mudar para que nada mude. Vida que segue.