Algumas
questões são difíceis. Entre um tropeção e outro, faz-se necessário
tomar uma decisão. Mas,... e sempre existe um “mas” no meio do caminho. Esse obstáculo pode se manifestar em 5.315 alternativas – todas tangenciando o
erro. Depois de exaustivos estudos, noites de insônia e dores de cabeça foi
possível concluir que parte das questões essenciais do mundo está concentrada
na compra de uma geladeira. E, se o/a ilustre leitor/a me honrar com o prazer
de sua companhia, tentarei desvendar essa tese extravagante.
Antes,
uma pequena digressão. A sociedade moderna discrimina tudo o que é diferente.
Ou o que não estiver na moda. Não adianta tentar manter idiossincrasias
particulares – quando menos se espera aparece um chato e pisa no nosso castelo
de areia; e pouco importa se passamos a tarde toda construindo aquela bobagem
para tentar impressionar alguma vítima. Um exemplo clássico, eternamente
presente em minha vida, está no tipo de marginalização que sofrem aqueles que
ignoram a indústria automobilística. Muitos de meus amigos jamais me perdoaram
por não possuir nem mesmo um fusquinha, por ter dificuldades em distinguir uma
Kombi de uma Ferrari e por detestar dirigir (certa vez, evidenciando típica
falta do que fazer, frequentei uma autoescola). Em outras palavras, essas
insignificâncias conseguiram me transformar em um cidadão de segunda classe.
Tudo bem, se a questão se resume em discriminar, lamento informar a quem
interessar possa que estou em ótima companhia: índios, sem-terras, sem-tetos, não
fumantes, negros e outras “minorias” menos cotadas.
Mas,
e a geladeira? Onde é que o eletrodoméstico entra nesta história? Calma, já
chego lá! Depois que me separei da mãe de meu filho, lá no século passado,
resolvi viver de forma ascética. Ou seja, com o mínimo indispensável. Morando
sozinho, e sem muitas preocupações com as questões domésticas, considerei que
ter um refrigerador era um item completamente dispensável na minha vida. Um
erro terrível. O resultado imediato dessa decisão foi o isolamento social.
Amarguei ouvir certas frases: Como é que vou à tua casa, se nem um cerveja
gelada você tem para servir? E a palavra gelada vinha envolta no papel celofane do desprezo. Até Mítia (na época, com
quatro anos), perguntava: E a geladeira, pai? Pois é, e a geladeira?
Acontece
que certo dia (provavelmente o resultado de algum descuido que nunca procurei
desfazer) notei que havia uma pequena folga na conta bancária. Sem saber o que
fazer com tamanha fortuna, decidi adquirir o que estava faltando para completar
a vida burguesa.
Armado
de paciência – mas não muita – fui à luta. Primeiro, uma pesquisa de preços.
Diferenças astronômicas entre uma loja e outra. O mesmo para as condições de
pagamento. Paralelo a isso, aprendi uma lição: não basta ter o dinheiro para
poder comprar. Algumas lojas não possuem estoques – é preciso esperar, no
mínimo, uma semana pela entrega!
Ansioso
para resolver a questão optei por fazer negócio com um estabelecimento em que a funcionária me prometeu posse imediata do objeto ao final
daquela mesma tarde. Além disso, aceitaram pagamento em diversas parcelas (sem
juros). Foi quase como acertar na loteria. Quase.
Como
era dia de brincar de pai exemplar, fui buscar o filho no colégio às cinco
horas da tarde. Em seguida, lépidos e faceiros, fomos para casa aguardar a
chegada da novidade. Que não chegou. Nem na manhã seguinte. Tampouco recebi
algum telefonema explicando a situação.
Furioso,
voltei até a loja. Com a cara de pau típica dos incompetentes o gerente me informou
que haviam vendido duas vezes o mesmo produto! Desfizemos o negócio
imediatamente. De gorjeta, mandei todo mundo plantar batata no asfalto. Com
enxada de borracha. Na verdade, os termos que utilizei foram outros e levemente
mais ríspidos. Coisa pouca. Bobagens de quem estava com a cabeça quente.
Procurei
outra loja. Dois dias depois. Ótima forma de pagamento, entrega em cinco dias,
diferença de preço quase insignificante. Arrisquei.
No
dia marcado, fiquei aguardando alguma tragédia. Que não veio. Aliás, nem
notícias da geladeira. Será que havia sido enrolado, outra vez? Receoso, fui
para o trabalho.
−
O moço da entrega estava com pressa. Pediu para que eu a recebesse. Será que
fiz mal?
Ignorei
a pergunta. A “coisa” estava lá, agasalhada por uma caixa de isopor. Tive uma
crise de paranoia: e se estiver estragada? Ou arranhada? Ou... sei eu lá!
Depois,
com o carinho que se oferece a uma namorada, a fiz ultrapassar a porta do
apartamento. Na manhã seguinte, já estava incorporada ao meu mundo domesticado.
E, por algum estranho motivo que não quero entender, passamos a viver um clima
de lua de mel.
xxxxxxxxxxxxxxx
O
texto acima é antigo, retirei alguns parágrafos e adaptei outros. Algumas das
observações refletem a época em que foi escrito. No entanto, mantém um pé no
contemporâneo. Comprovei isso recentemente quando precisei trocar o
eletrodoméstico. O sistema de entrega melhorou, mas a conversa mole dos
vendedores continua igual. Enfim, como dizia um personagem literário, tudo
mudar para que nada mude. Vida que segue.
Nenhum comentário:
Postar um comentário