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segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A BIBLIOTECA PÚBLICA E EU

Eu não tinha mais de quatorze anos quando pisei pela primeira vez na Biblioteca Pública de Lages − localizada no primeiro andar de um casarão, na Rua Nereu Ramos. Isso foi lá por 1972 ou 73. Sem consciência dos horrores político−militares que aconteciam no país, depois de ter devorado todo acervo da biblioteca do Centro Educacional Vidal Ramos Júnior, colégio onde estudei durante vários anos, era hora de ampliar horizontes e leituras.

O menino, que escondia atrás da leitura uma família esfacelada, ficou espantado com tantos livros. De imediato, começou a brincar no parque de diversões. Devorou os vinte e tantos volumes de Karl May, um escritor atualmente esquecido e que, naqueles dias, era (guardadas as proporções) tão importante quanto J. K. Rowling (a autora de Harry Potter). Depois, foi descobrindo − de forma intuitiva − outras formas de se relacionar com o conhecimento.

As tardes passavam rápidas e os mundos revelados pela coleção Terra−mar−e−ar iam construindo outros mundos (para onde era possível fugir toda vez que a vida se mostrava insuportável).

Em 1975, a Biblioteca Pública mudou de endereço: Parque Jonas Ramos, o Tanque. Foi lá que conheci Ângela Figueiredo. Ela foi a primeira bibliotecária a propor um novo entendimento para o espaço. Em lugar de um depósito de livros velhos e jornais amarelados, ambicionava transformar o local em algo mais. Nesse sentido, não mediu esforços para promover exposições de artes plásticas, grupos literários e sessões de autógrafos. Em alguns momentos, os integrantes do Grupo Teatral Gralha Azul passavam por lá e organizavam oficinas para confecção de bonecos.

Alegando que eu conhecia o acervo melhor do que alguns funcionários, Ângela me ofereceu emprego. Recusei. Trabalhar na biblioteca me parecia uma repetição da síndrome de Borges – estar cercado de livros e, ao mesmo tempo, impedido de ler o que quisesse no momento em que quisesse. Resisti o quanto foi possível.

O tempo foi modificando a vida. A Biblioteca também não esteve imune a esse processo. Sob a direção de Sandra Varela, que oxigenou o local (com idéias, com propostas, com a ampliação do acervo), a atividade cultural foi intensificada. Quem queria alguma coisa além da mediocridade, freqüentava a biblioteca.

No âmbito pessoal, a vida me empurrou na direção do serviço público. Um pouco a contragosto, em 1985, aceitei assessorar o Departamento de Cultura (que estava localizado no andar superior da Biblioteca Pública). Foi divertido. Entre as sessões de cinema (projetor de 16 mm) em associações de moradores e os sanduíches de mortadela com cerveja quente, seguindo o conceito pouco prático de debater todas as ações culturais, havia ciclos de discussões intermináveis sobre o nada. Transformar o mundo dava um trabalho danado.

Sempre que possível, eu fugia do serviço e descia as escadas (para ler, para conversar, para respirar). As pressões políticas sempre me pareceram excessivas e somente no meio das estantes era possível acreditar que a vida tinha outro andamento. Alguns anos depois, quando tive contato com a obra de Walter Benjamin, foi fácil entender a solidão do pesquisador na Biblioteca de Paris, cercado de livros, ameaçado pela barbárie.

Lendo jornais ou filosofando na companhia de pessoas como Fernando Karl, Nereu de Lima Goss (falecido), Estevam Borges (falecido) ou os irmãos Antônio Wolff (falecido) e Leônidas Miguel Wolff estreitei relações afetivas e ampliei o entendimento do mundo. Enfim, parte de minha educação intelectual foi forjada na Biblioteca Pública.

Uma crise no governo municipal levou a vários pedidos de demissão. Como optei por conservar o emprego, fui transferido para um lugar ermo − onde passei quase oito meses ouvindo discos de jazz e lendo alguns clássicos. Também consegui escrever uma meia dúzia de poemas. Se a idéia era me castigar, a única coisa que posso dizer desse período é que "eles" eram muito idiotas.

Como minhas finanças particulares estavam quase equilibradas (leia−se: estava conseguindo pagar a conta em A Sua Livraria), a Biblioteca Pública ficou um pouco de lado. Mesmo assim, estive presente em vários momentos. Seja para emprestar livros, seja em eventos. Lembro, por exemplo, de uma sessão de autógrafos com Guido Wilmar Sassi e Nereu Correa. Nesse dia, Licurgo Costa fez um discurso bastante enfático propondo que a Biblioteca mudasse de nome. Segundo o embaixador, ela deveria se chamar Paulo Setubal − em homenagem ao escritor paulista que morou em Lages na transição do século XIX para o XX. Essa proposta não conseguiu muitos adeptos. Não faltou quem lembrasse que, em Confiteor (o livro de memórias de Setubal), ele comenta que foi em Lages que conheceu três atividades: a bebida, o jogo e a prostituição.

Provavelmente isso é verdade. Mas, como somente é possível no interior do país, a moral e os bons costumes criam ressentimentos e a história da cidade precisa ser preservada de certas nódoas.

Outro episodio divertido ocorreu quando um leitor foi procurar pelo exemplar de Ao Vencedor, as Batatas, clássico estudo literário sobre Machado de Assis, escrito por Roberto Schwarz. Ao reclamar no balcão que não o estava encontrando, o funcionário (que havia sido transferido recentemente) não teve duvidas e recomendou procurar na sessão de agricultura. O livro estava lá.

Nos últimos anos, embora estivesse ausente fisicamente, acompanhei os incansáveis esforços da Miriam de Fátima Machado Rosa para superar barreiras e o embotamento administrativo. Vi absurdos e maravilhas. Lamentei as intermináveis infiltrações na estrutura do prédio. Quase soltei fogos de artifício quando permitiram aos usuários o acesso à Internet.

Infelizmente, por motivos que fogem da lógica mais elementar, há pouco interesse do poder publico em elaborar projetos de financiamentos e, conseqüentemente, resolver problemas básicos. Ampliar o acervo, contratar funcionários qualificados em biblioteconomia e pesquisa histórica, gerar instrumentos de interesse e extensão comunitária, transformar o prédio em um centro cultural – essas e outras demandas deveriam ser resolvidas a curto e médio prazo. Provavelmente nunca serão. A cultura nunca encontra lugar na mesa de negociação política.

Então, nesse deserto de idéias que edulcora a vida provinciana, só me resta desejar que a Biblioteca consiga sobreviver outros 60 anos. Na medida do possível, estarei junto.


P.S: A primeira foto é de autoria de Francisco de Assis, dileto amigo.

4 comentários:

  1. Boa Raul! Caso os recursos dessa invenção chamada turismo rural fosse destinada para Secretaria de Educação e Cultura as coisas provavelmente estariam diferentes - e melhores. Bom texto, vida longa a biblioteca pública!

    ps: detalhe para a conta da livraria hehehe seu João devia ter um bom cliente, além de um bom amigo, claro.

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  2. Uma relação de amor que J.L.Borges tinha com a biblioteca e seus labirintos.

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  3. BOA LEMBRANÇA, O LEÔNIIDAS AINDA CONTINUA NA BIBLIOTECA,SEMPRE DISPOSTO A CONVERSAÇÃO LITERÁRIA, ENQUANTO MUITOS PARTIRAM,VIDA LONGA E PRÓSPERA À BIBLIOTECA.

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  4. Raul, nossa cultura literária na serra é fraca, eu hj com meus 32 anos, estimulo meus filhos a leitura, um guri com 6 euma menina com 14, os dois ja leram mais livros que eu qdo tinha 20 e poucos anos, garrei amor a leitura mesmo aos 26 anos, hj sou viciado em ler. esse avanço tecnológico de pesquisas fez baixar fluentemente a procura pela biblioteca.....mas como estimular hj nossos jovens a visitar esses espaços culturais, sendo que temos uma industria de entreternimento muito grande oferecida pela mídia e governo....
    sinto saudades da biblioteca qdo jogava xadrez aos 14 anos.....
    um grande abraço
    Paschoal Ghizoni Eger

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