Alguns dos principais momentos, movimentos, autores, livros e projetos culturais que integram a diversão cultural que − durante muitos anos − importamos das’oropas constituem o cerne de toda a literatura produzida durante a colonização, o Império e a República (incluindo nesse balaio de gatos inúmeros tropeços e trapaças, espelhados na evolução ou involução de todos ismos que edulcoram o entreguismo social, político e econômico que viceja na Idolatrada Salva Salve).
Barroco, arcadismo, romantismo, realismo − naturalismo, parnasianismo, simbolismo – são muitos os pseudônimos literários dos grupelhos artísticos e poucas as saídas para os incontáveis curto−circuitos que costumam acenar alegremente para os trouxas, nas esquinas da vida. Centenas de biografias e autobiografias, muitas vezes ficcionais, de algumas das personagens mais significativas da história cultural brasileira contribuíram para adensar a farsa.
Em contrapartida, pilhas de ensaios acadêmicos − massudos e maçantes – procuram lançar luzes sobre o esclarecimento (ou será sobre o escarnecimento?). Em flagrante contradição, esse conjunto de ensaios ajuda a multiplicar a ininteligibilidade através do uso indiscriminado do jargão hermético que caracteriza os cursos de pós−graduação. Infelizmente, esse expediente afasta o leitor interessado no assunto, pois impede acesso a algum tipo de escada que lhe permita alcançar tamanha iluminação intelectual. As estantes das livrarias estão repletas desses maravilhosos encalhes.
Talvez esse desencontro encontre uma alternativa nos estudos independentes da vida parasitária, perdão, universitária. Sem estar atrelado à camisa de força do carreirismo profissional (potencializado pelo currículo Lattes), esse tipo de texto pode apresentar teses e questionamentos de forma menos sisuda e mais coloquial. Misturando causos, anedotas, fofocas e o inquestionável flerte com a crônica, tornam mais acessível ao público o fluxo de informações.
O livro 1922 – A Semana que Não Terminou, escrito pelo jornalista Marcos Augusto Gonçalves, constitui um exemplo bastante significativo dessa proposta. Sem se preocupar com os esquemas pedagógicos das escolas literárias, sem ter medo de estabelecer um significativo panorama dos fatos que culminaram em três dias de muita pandega e pouca seriedade, sem se incomodar em dividir seu livro em pequenos capítulos, o autor não se deixou levar pelos ventos publicitários e sintetizou o cenário da seguinte maneira: Na realidade, com uma ou outra exceção, mal havia escolhas estéticas radicais das quais abrir mão. Naquele momento, estava tudo a meio caminho, em nosso modernismo plantation. O velho tardava em se retirar e o novo ainda não reunia energias para se impor.
Em lugar de se deter no mecenato de Paulo Prado, no caso Anita Malfatti x Monteiro Lobato, na verve extravagante de Menotti del Picchia, no uso inescrupuloso da fama de Graça Aranha, nos conflitos musicais entre Guiomar Novaes e Heitor Villa−Lobos, no talento artístico de Victor Brecheret ou nos contrastes entre os meninões burgueses (Oswald de Andrade e Mário de Andrade, na definição certeira de Emiliano Di Cavalcanti), o autor de 1922 – A Semana que Não Terminou escolheu transitar por outro caminho.
Ao contrário de outros livros sobre o tema, que instilam mitos ideológicos em favor de interesses escusos, Marcos Augusto Gonçalves elaborou um amplo (e divertido) painel histórico do passadismo literário que antecedeu ao modernismo futurista. Sem escrúpulos de intelectual politicamente correto, deduziu – escorado em farta bibliografia − que muitos dos acontecimentos daqueles três dias de fevereiro foram conseqüências do Reuniram−se, resolveram fazer e foram fazendo (conforme declaração do artista gráfico Antonio Paim Vieira).
A Semana de Arte Moderna – imitando algumas idéias que, naquele momento, tinha deixado de ser modernas na Europa – em parte foi fruto do improviso. Em parte foi trapalhada. Depois da relativa simpatia que causou nos espectadores da primeira noite, com direito a aplausos de variada intensidade, a folia deixou no ar a possibilidade (para muitos de seus integrantes) absurda de ser considerada um grande sucesso. Não há duvidas que a Semana havia sido concebida pelos seus idealizadores para causar furor, marcar uma data, gerar atritos e instaurar−se como marco simbólico de uma transformação, escreve Marcos Augusto Gonçalves. Sem reações de desagrado, sem polêmica e sem vaias, o plano corria o risco de naufragar, acrescenta.
Como há solução para tudo, alguns amigos do movimento foram convocados (provavelmente por Oswald) para resolver o impasse. A vanguardinha do barulho cumpriu com a missão que lhe fora designada. Ou seja, vaiou com força e vontade. E os jornais, para alegria geral, noticiaram a ação dos malcriados.
Trocando em miúdos, a Semana de Arte Moderna foi uma festa. Tanto que resultou em prejuízo financeiro. Questão menor, deve ter pensado Paulo Prado, cafeicultor podre de rico que, ao lado de Olívia Guedes Penteado, encabeçou uma lista de subscrições para cobrir as despesas (o aluguel do Teatro Municipal custou 847 mil-réis).
Foi assim, em ritmo de patuscada juvenil, que o modernismo plantou as suas primeiras sementes em solo brazuca. Nasceu uma arvore frondosa, onde alguns espertinhos ainda hoje se lambuzam com doces frutos.
Um resumo da brincadeira está expresso em carta que Mário de Andrade (com ironia e potencial profético) escreveu para Menotti del Picchia, Conseguimos enfim o que desejávamos: celebridade. (...) Somos todos pseudo−futuristas, uns casos teratológicos. Somos burríssimos. Idiotas. Ignorantíssimos. Compreendes que com todas essas qualidades só havia um meio de alcançar a celebridade: lançar uma arte verdadeiramente incompreensível, fabricar o carnaval da Semana de Arte Moderna e... (...) Estamos célebres! Enfim! Nossos livros serão lidíssimo! Insultadíssimos, celebérrimos. Teremos nossos nomes eternizados nos jornais e na História da Arte Brasileira.
De qualquer forma, parte do objetivo da Semana de Arte Moderna era responder a um dos itens sugeridos, vários anos depois, no Manifesto Antropofágico: Tupi or not tupi, that is the question. Como essa é outra historia, e talvez o tema para outro livro, cabe recomendar, a quem interessar possa, os próximos capítulos da novela que está sendo escrita (e reescrita) pela historiografia literária brasileira.
O jornalista Mascos Augusto Gonçalves, autor de 1922 – A Semana que Não Terminou.
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