No século I, Tito, filho do imperador Vespasiano, tornou público que se sentia enojado com a cobrança de taxa para o uso dos banheiros públicos em Roma. Manifestou objeções contra esse dinheiro de origem pouco limpa. O imperador pediu que o filho cheirasse uma das moedas. Em seguida, decretou: Pecunia non olet (dinheiro não tem cheiro).
Vespasiano tentou indicar que a questão fundamental não está na posse do dinheiro e sim no uso que se dá a ele. Contemporaneamente, somente os ingênuos acreditam nessa isenção valorativa. A posse do dinheiro se revela ordinariamente como um dos elementos de controle do poder. E multiplica as formas de anestesia social. Simultaneamente, como se uma coisa fosse extensão da outra, induz a flexibilidade nos limites e nos escrúpulos morais. Em outras palavras, a ideologia da acumulação financeira, seja no século I, seja na atualidade, estabeleceu uma regra de ouro para o comportamento social: tudo está à venda. Tudo. Sem exceções.
Um dos livros escritos pelo professor de filosofia política na Universidade de Harvard Michael J. Sandel, O Que o Dinheiro Não Compra (Os Limites Morais do Mercado), assim como um cachorro que corre atrás do próprio rabo, faz várias considerações em torno do tema.
Livros sobre economia costumam ser chatos. Irremediavelmente chatos. Sandel, jogando para a torcida, utiliza vários truques para contornar esse obstáculo e tornar o seu texto mais palatável. O mais importante – e, consequentemente, o mais complicado – é a enumeração. Sem preocupação em fazer uma análise critica mais consistente, vai empilhando exemplos. São centenas de histórias, repletas de detalhes bizarros, que o leitor, boquiaberto com essa pseudo−erudição, acaba devorando como se estivesse lendo um romance. A ideia é mostrar − no grande supermercado das ilusões em que o capitalismo estabelece o preço de cada coisa − que posturas éticas e morais foram coisificadas, transformadas em produtos comerciais.
Na interpretação de Sandel, o deus mercado costuma se apresentar como uma criança faminta diante da vitrina da confeitaria. Guiado por olhos ávidos, não se contenta com migalhas. Quer se apoderar de tudo. Ao mesmo tempo, apoiada em determinados anestésicos (prazer físico e mental, sistemas de marketing e consumo, qualidade de vida), a índole predadora da lógica comercial elimina o julgamento moral e decreta que as transações comerciais são a prioridade do ordenamento social. E, em quase todas as ocasiões − como compete aos bárbaros −, a saciedade está intimamente relacionada com a quantidade de adversários destroçados no combate.
O comportamento social, sob a influência do dinheiro, costuma sofrer transmutação alquímica. A possibilidade de obter algum tipo de benefício ou lucro destrói um dos ideais da Democracia: a distribuição igualitária dos bens sociais. O poder corruptor do dinheiro estabelece outro ordenamento. Ofertas e preços contribuem para excluir o acesso de parte da população. Enquanto alguns segmentos precisam sobreviver aos mecanismos de extração da força de trabalho, outros são favorecidos pelas facilidades obtidas pelo uso constante e amoral do dinheiro.
Em alguns casos, a acumulação financeira contribui para alterar comportamentos. Sandel fornece um exemplo interessante. Uma creche não sabia o que fazer para impedir que alguns pais se atrasassem ao final da tarde. Ao mesmo tempo, moralmente culpados, esses pais não sabiam como se desculpar pelos problemas que estavam causando. Como os atrasos se tornaram frequentes, a direção da creche resolveu instituir uma multa pecuniária. Para surpresa geral, o numero de atrasos aumentou exponencialmente. Muitos pais inverteram o raciocínio econômico. A multa (punição moral) se transformou em taxa (pagamento por serviço extra). Assim, através do poder diluidor do dinheiro, ninguém precisou mais se incomodar com o constrangimento causado nos funcionários da creche - que, por dinheiro, não colocaram obstáculo em trabalhar além do horário de expediente. Na concepção econômica dos pais e professores da creche, o mundo está atrelado ao poder do dinheiro.
Em um constructo social em que os indivíduos podem contratar empresas para pedir desculpas ou pessoas para guardar lugar nas filas para obter senhas de atendimento médico, quem dispõe de maiores recursos financeiros determina as prioridades na luta pela sobrevivência. Essa constatação pode ser verificada diariamente em exemplos esportivos – que vendem todos os espaços publicitários possíveis − ou no direito internacional (Protocolo de Kyoto), que estabelece que algumas nações não precisam se preocupar com a poluição atmosférica desde que comprem reservas de carbono dos países subdesenvolvidos.
Numa época de crescente desigualdade, a marquetização de tudo significa que as pessoas abastardas e as de poucos recursos levam vidas cada vez mais separadas. Vivemos, trabalhamos e nos distraímos em lugares diferentes. Nossos filhos vão a escolas diferentes, sublinha Sandel, tentando sublimar a culpa estadunidense na segregação promovida pelo capitalismo predatório.
Embora não responda duas das questões cruciais que aborda, Queremos uma sociedade onde tudo esteja à venda? Ou será que existem certos bens morais e cívicos que não são honrados pelo mercado e que o dinheiro não compra?, Michael J. Sandel, em O Que o Dinheiro Não Compra (Os Limites Morais do Mercado), consegue deslocar os holofotes – que estavam centralizados na banalidade – e lançar algumas luzes sobre o problema. Esse esforço parece não ser o suficiente para afastar o mau cheiro que acompanha o dinheiro.
Como costumam dizer alguns humoristas estadunidenses, Se quer saber o que Deus pensa do dinheiro, veja para quem Ele dá. Qualquer análise (empírica, estatística, bibliográfica) mostra que em 95% dos casos as melhores pessoas não são aqueles que possuem dinheiro em excesso.
Excelente definição, meus parabéns 👏👏👏!
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