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quinta-feira, 8 de novembro de 2012

DEUS DA CARNIFICINA, O FILME

Teatro é teatro, cinema é cinema. Apesar do caráter simplório desse esclarecimento, ele se faz necessário quando o objeto de análise transita entre as duas formas artísticas. Também convém não esquecer que, durante algum tempo, o cinema flertou com a hibridez do teatro filmado – que desapareceu logo depois que o realismo assumiu o proscênio artístico.

O filme Deus da Carnificina (Carnage. Dir. Roman Polanski, 2011), baseado na peça de teatro escrita por Yasmina Reza, caracteriza um interessante curto−circuito. O texto dramatúrgico, transposto para a tela grande, se parece com diversas coisas − exceto cinema. Essa é a sua principal característica – simultaneamente, o seu principal defeito. A verossimilhança que o espectador imagina ser possível em determinado tipo de cinema não se apresenta neste caso. Falta algo. Ou sobra. E isso o filme não consegue superar.

Diante das imagens, do caráter inegavelmente artificial das imagens, quando a quarta parede do teatro não se apresenta, quando as cenas ficam restritas ao espaço físico limitado do apartamento e do corredor do prédio, o festival de horrores protagonizado pelos dois casais em cena não se sustenta. Parte da culpa desse problema está no inequívoco descompasso entre o que está sendo projetado na tela e os diálogos cortantes, que estão entrelaçados com o nonsense. Enquanto o discurso dos atores se deslocada em uma direção, a geografia cênica está centralizada em outro espetáculo.

O motivo do encontro de Alan (Christoph Waltz) e Nancy Cowan (Kate Winslet) com Michael (John C. Reilly) e Penelope "Penny" Longstreet (Jodie Foster) parece banal: os filhos pré−adolescentes brigaram em um parque. Infelizmente, não foi uma briga qualquer. Na única cena externa do filme, Zachary Cowan, perde a paciência e bate com um pedaço de madeira no rosto de Ethan Longstreet.

Alan Cowan, talvez em função de sua profissão (advogado corporativo), flerta com o cínico profissional. Além disso, ele está ressentido por ter que abandonar os negócios para resolver o problema criado pelo filho. Sua esposa, Nancy, trabalha com investimentos financeiros e não parece ter instinto maternal – embora entenda que o filho ultrapassou a perigosa linha que divide a civilização da barbárie.

Michael, vendedor de ferramentas, não possui instrução acadêmica ou habilidade intelectual. Suas idéias políticas se aproximam perigosamente da direita reacionária. Sua esposa, Penelope, também chamada de Penny, adora o discurso politicamente correto e divide os aborrecimentos da vida doméstica com o amor que sente pelos livros de arte.

Quando o filme inicia, os casais parecem estar cientes de que − de alguma forma – devem reparar a situação que os levou até aquele labirinto emocional. Logo se dissipa essa sensação, dando lugar ao ressentimento e ao histerismo feminino. A discussão, cada vez mais agressiva, não cessa.

Como os dois homens não gostariam de estar presentes naquele local, no apartamento dos Longstreet, cada um deles procura algum esconderijo. Alan, através do celular, continua trabalhando. Irritante, o aparelho toca a todo instante. Nancy não perde a oportunidade e alfineta o marido, dizendo aos anfitriões:

− Eu convivo com isso... dia e noite. O celular guia nossas vidas. O que acontece em outro lugar é sempre mais importante.

Michael procura abrigo na garrafa de whisky (18 anos). Como a conversa não avança, todos avançam na bebida – e isso contribui para piorar o clima. A briga dos filhos se torna uma desculpa para resolver questões pessoais ou para esclarecer tensões internas entre os casais. Nessa bagunça, dois momentos críticos. Ambos protagonizados por Nancy. Primeiro, ela sente algum tipo de mal−estar (talvez causado por uma torta servida antes pelos anfitriões). Depois de beber uma dose reforçada de whisky, Nancy vomita sobre os livros de arte de Penelope. Embora esse ato não seja conscientemente intencional, expressa o descompasso dramático. O fato de ter estragado uma coleção de gravuras de Oscar Kokoschka, um pintor não muito agradável para a estética burguesa, parece indicar o quanto pesado está o ambiente que separa os dois casais.

Essa cena possibilita um intervalo para todos poderem respirar e reagrupar suas estratégias. Como o telefone não para de tocar, interrompendo a conversa a todo instante, Nancy, em um ataque de fúria, arranca o celular da mão do marido e joga o aparelho dentro de um vaso cheio de água e flores. Evidentemente, esse ato desesperado não corta a comunicação com o mundo exterior.

Em dado momento, os pares se mostram modificados. As mulheres se unem contra os homens, os homens combatem as mulheres. Talvez seja através dessa trapaça tática que as quatro pessoas encontram uma maneira de não resolver o conflito, de continuar o impasse.

Deus da Carnificina não convence como cinema. O tom pesado da edição impede que espectador veja a tragicomédia. O drama parece artificial. São defeitos insuperáveis. Talvez seja um bom convite para assistir a montagem teatral.

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