Heleno de Gusmão quer fornecer um
enterro digno a Cícero – que foi morto em uma briga de rua. Os preparativos para
o translado do corpo são complicados, envolvem grandes gastos de energia,
custam uma quantidade razoável de dinheiro. A viagem é longa, a distância entre
São Paulo e Pernambuco parece não ter fim.
Na estrada que liga a transitoriedade da
vida e as perdas afetivas, Nossos Ossos, romance curto de Marcelino Freire, fornece
visibilidade para alguns elementos que costumam ser omitidos pelo
bem-comportado catálogo da literatura brasileira contemporânea. Segundo pesquisa
coordenada por Regina Dalcastagnè (UnB), há um padrão homogêneo e inequívoco na
ficção nacional. Os personagens de ficção são, em sua grande maioria, homens,
brancos, jovens, heterossexuais, classe média em ascensão. Nessa classificação
estratificada – onde o poder normatizador estabelece regras rígidas de conduta
pública –, não há espaço para a diversidade. Ou melhor, a exclusão comportamental
requer ambiente diferenciado, distante daquilo que a violência conformista e
puritana rotulou como “normalidade”.
Felizmente, Nossos Ossos repudia – de
forma veemente – esse esquema insosso. Com engenho e sensibilidade, contornando as dificuldades que acompanham o narrador em
primeira pessoa, o texto estabelece um tipo especial de dramaturgia da dor,
aquela que acompanha a pulsação do amor que não ousa dizer o nome. Quase
todas as personagens do livro são homossexuais, pobres, marginais (em diversos
sentidos). A gente se uniu na saudade, no sotaque semelhante, no interesse mútuo,
eu querendo saber de sua história de prostituto, ele, curioso, como é que eu
consegui ficar famoso, se foi fácil, por acaso teatro dá dinheiro?
A vida é teatro (ou sonho, se valer a
proposição de Pedro Calderón de la Barca). O que uniu o escritor e o garoto de
programa projeta o drama romântico, a tragédia grega, os
integrantes do coro e as carpideiras anunciando as piores notícias, Caronte cobra
pedágio (óbolo ou danake) de quem precisa transpor os rios Estige
e Aqueronte, paredes divisórias entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos
(Hades).
(...) eu saí com o boy morto muitas
vezes, tomamos prosecco, caju-amigo, licor báquico, eu trouxe o garoto, certas
madrugadas, para o meu apartamento, ele ficou admirado com os livros que eu guardo,
numa pilha os amores de Lorca, os cantos de Carmina Burana, dramas de todo
tipo. Nesse percurso o luto e a dor ficam sussurrando para Heleno que ninguém
vai substituir o que se perdeu, ninguém vai enxugar as lágrimas derramadas,
ninguém vai lhe ensinar a viver sozinho.
Heleno narra o transporte do corpo de
Cícero com economia, quase a conta-gotas. O cadáver é o elemento deflagrador
das lembranças. O discurso narrativo, construído como ruptura e
abismo, como articulação da angústia e do suplício,
multiplica as histórias auxiliares, os detalhes, a intimidade do desencontro. Ao mesmo tempo, tudo faz para retardar o desfecho – instante em
que as ruínas que envolvem a vida adquirem nova substância.
A crueldade da morte muitas vezes evoca
a presença das Erínias. Não é o caso. Em Nossos Ossos, Dionysius e Thanatos
alternam a aparição no proscênio. O cadáver do rapaz antecipa outros gozos,
outras mortes – situações que vão sendo descritas em paralelo ao texto
principal. Em alguns momentos, esse deslizar secundário se realiza imperceptivelmente. Em outros, assusta pela presença ruidosa. De
qualquer maneira, o destino marcha irredutivelmente na direção do horror, nem mesmo deus consegue impedir que Átropos, a mais cruel das
três Moiras, corte o fio da vida. Nas palavras de Lourenço, o motorista do
carro que levou o caixão de Cícero até a vila de Paço do Boi, no interior de
Pernambuco, entenda, por favor, Heleno, aqui se encerra a sua ladainha, eu já
estou acostumado com isto, digo, em ouvir espíritos recém-saídos da morte,
reconheço a sua missão qual era, a de entregar o rapaz à família, ele já está
entregue, agora parta, encare, seja forte, não sofra mais, você merece, mais do
que ninguém, agora, Heleno, descansar em paz.
P.S: Em alguns momentos, por diversas razões,
todas complementares e, simultaneamente, antagônicas, torna-se inevitável fazer associações entre o romance de
Marcelino Freire e dois outros textos ficcionais, o conto Assim Vivemos
Agora, de Susan Sontag, e a segunda parte de A História dos Ossos, de Alberto
Martins. O primeiro, de forma lírica, trata da amizade e das preocupações que
antecedem à morte de um homem. A estrutura polifônica e fragmentada do discurso antecipa a aflição e a tristeza. O segundo é a descrição de um ritual
funerário familiar, o que restou do corpo do pai, os ossos, sendo transportados
de um cemitério até “a morada final”.
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