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quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

NOSSOS OSSOS



Heleno de Gusmão quer fornecer um enterro digno a Cícero – que foi morto em uma briga de rua. Os preparativos para o translado do corpo são complicados, envolvem grandes gastos de energia, custam uma quantidade razoável de dinheiro. A viagem é longa, a distância entre São Paulo e Pernambuco parece não ter fim.

Na estrada que liga a transitoriedade da vida e as perdas afetivas, Nossos Ossos, romance curto de Marcelino Freire, fornece visibilidade para alguns elementos que costumam ser omitidos pelo bem-comportado catálogo da literatura brasileira contemporânea. Segundo pesquisa coordenada por Regina Dalcastagnè (UnB), há um padrão homogêneo e inequívoco na ficção nacional. Os personagens de ficção são, em sua grande maioria, homens, brancos, jovens, heterossexuais, classe média em ascensão. Nessa classificação estratificada – onde o poder normatizador estabelece regras rígidas de conduta pública –, não há espaço para a diversidade. Ou melhor, a exclusão comportamental requer ambiente diferenciado, distante daquilo que a violência conformista e puritana rotulou como “normalidade”.

Felizmente, Nossos Ossos repudia – de forma veemente – esse esquema insosso. Com engenho e sensibilidade, contornando as dificuldades que acompanham o narrador em primeira pessoa, o texto estabelece um tipo especial de dramaturgia da dor, aquela que acompanha a pulsação do amor que não ousa dizer o nome. Quase todas as personagens do livro são homossexuais, pobres, marginais (em diversos sentidos). A gente se uniu na saudade, no sotaque semelhante, no interesse mútuo, eu querendo saber de sua história de prostituto, ele, curioso, como é que eu consegui ficar famoso, se foi fácil, por acaso teatro dá dinheiro?

A vida é teatro (ou sonho, se valer a proposição de Pedro Calderón de la Barca). O que uniu o escritor e o garoto de programa projeta o drama romântico, a tragédia grega, os integrantes do coro e as carpideiras anunciando as piores notícias, Caronte cobra pedágio (óbolo ou danake) de quem precisa transpor os rios Estige e Aqueronte, paredes divisórias entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos (Hades).

(...) eu saí com o boy morto muitas vezes, tomamos prosecco, caju-amigo, licor báquico, eu trouxe o garoto, certas madrugadas, para o meu apartamento, ele ficou admirado com os livros que eu guardo, numa pilha os amores de Lorca, os cantos de Carmina Burana, dramas de todo tipo. Nesse percurso o luto e a dor ficam sussurrando para Heleno que ninguém vai substituir o que se perdeu, ninguém vai enxugar as lágrimas derramadas, ninguém vai lhe ensinar a viver sozinho.

Heleno narra o transporte do corpo de Cícero com economia, quase a conta-gotas. O cadáver é o elemento deflagrador das lembranças. O discurso narrativo, construído como ruptura e abismo, como articulação da angústia e do suplício, multiplica as histórias auxiliares, os detalhes, a intimidade do desencontro. Ao mesmo tempo, tudo faz para retardar o desfecho – instante em que as ruínas que envolvem a vida adquirem nova substância.

A crueldade da morte muitas vezes evoca a presença das Erínias. Não é o caso. Em Nossos Ossos, Dionysius e Thanatos alternam a aparição no proscênio. O cadáver do rapaz antecipa outros gozos, outras mortes – situações que vão sendo descritas em paralelo ao texto principal. Em alguns momentos, esse deslizar secundário se realiza imperceptivelmente. Em outros, assusta pela presença ruidosa. De qualquer maneira, o destino marcha irredutivelmente na direção do horror, nem mesmo deus consegue impedir que Átropos, a mais cruel das três Moiras, corte o fio da vida. Nas palavras de Lourenço, o motorista do carro que levou o caixão de Cícero até a vila de Paço do Boi, no interior de Pernambuco, entenda, por favor, Heleno, aqui se encerra a sua ladainha, eu já estou acostumado com isto, digo, em ouvir espíritos recém-saídos da morte, reconheço a sua missão qual era, a de entregar o rapaz à família, ele já está entregue, agora parta, encare, seja forte, não sofra mais, você merece, mais do que ninguém, agora, Heleno, descansar em paz.


P.S: Em alguns momentos, por diversas razões, todas complementares e, simultaneamente, antagônicas, torna-se inevitável fazer associações entre o romance de Marcelino Freire e dois outros textos ficcionais, o conto Assim Vivemos Agora, de Susan Sontag, e a segunda parte de A História dos Ossos, de Alberto Martins. O primeiro, de forma lírica, trata da amizade e das preocupações que antecedem à morte de um homem. A estrutura polifônica e fragmentada do discurso antecipa a aflição e a tristeza. O segundo é a descrição de um ritual funerário familiar, o que restou do corpo do pai, os ossos, sendo transportados de um cemitério até “a morada final”.

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