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segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

NEUROMANCER (ou minhas anotações tardias)

Outro dia, enquanto olhava as novidades em uma livraria, descobri uma edição recente de Neuromancer, o célebre romance de ficção científica. Comprei o exemplar. Para ler depois, bem depois, uns dois ou três anos depois. A velha história de sempre. Como cabe aos cínicos, ter cópias dos clássicos (aqueles livros que todo mundo, ou melhor, todas as pessoas que merecem algum crédito, consideram como importantes, e, que, por alguma razão, você nunca leu) equivale a uma parede repleta de troféus. Essa ideia (independente das sutilezas que a envolvem) serve para construir, sem o mínimo vigor/rigor, muitas vigarices. O mundo intelectual (e isso se torna a cada dia mais difícil de negar) não costuma primar pela honestidade. Em outras palavras, poucos são os que conseguem resistir ao golpe de mestre (logo depois de consultar o resumo no Google): Veja, esse eu li, clássico total, gostei muito, grande história.

Um fluxo descontínuo de imagens – o enredo de Neuromancer pode ser sintetizado no número exponencial de frames expostos na interface de algum equipamento contaminado por vários tipos de vírus letais. Mas, felizmente, é um pouco mais. Nas 311 páginas do romance (na edição da Editora Aleph), a história de Henry Dorsett Case – um hacker nômade em um mundo anômalo – está conectada com forças divergentes e fora de controle. Para conseguir o antídoto contra a toxina mortal que foi implantada em seu corpo, ele precisa realizar uma série de trabalhos pouco ortodoxos, os dedos voando sobre o teclado. Utilizando como cenário as contradições que unem o desenvolvimento tecnofetichista e a barbárie pré-moderna (e que anestesiam Ciba City, Night City, Villa Straylight, Istambul, Berna, Berlim, Tóquio, Rio de Janeiro, Zion e Sprawl), o horizonte de eventos se transforma em versão hardcore de um faroeste virtual. Isto é, nos melhores momentos de um vídeo game que enlouqueceu, torna-se difícil distinguir o real e o virtual. A imprecisão entre as duas áreas adensa o conteúdo narrativo – momento em que a alta tecnologia e a decadência moral se amalgamam e institucionalizam o horror.

Em Matrix (o ciberespaço), o pacote de inovações tecnológicas (clones, robôs, dromes, microchips, inteligência artificial) parece interminável, assim como suas aplicações/implicações na existência de cada uma das personagens.Velocidade da luz. Industrialização do frenesi e da alienação. Algoritmos alfanuméricos anunciando o predomínio da estética feérica. Subculturas niilistas se multiplicando em um Estado totalitário, dependente dos conglomerados econômicos. As fronteiras entre o Ocidente e o Oriente se dissolvendo em explosões de urânio, plutônio e policarbono. (...) rostos olhando por entre uma floresta de neon, marinheiros, marginais e putas, sob um céu de prata envenenada...

Neuromancer inaugura a ficção cyberpunk (um subgênero  literário de difícil conceituação) e está aquém de mero exercício aritmético com sinapses fragmentadas: origamis e alimentação orgânica, narcotráfico e violência extrema. A ficção enevoada pelo fulgor de velas coloridas. Adrenalina e dopamina em doses maciças ao alcance do touchscreen. Como uma holografia tridimensional – playgrounds soltos no espaço – projeta o advento dos quatro cavaleiros do Apocalipse, representações literárias da fragilidade humana. Em um mundo onde hackers e crackers se confundem – e confundem o mundo em que se movimentam –, impera a estratégia de sobrevivência contra incontáveis predadores. Nada está a salvo. Nem mesmo a sanidade e o conhecimento – ferramentas indispensáveis para tentar impedir que os erros sejam repetidos.

Em alguns momentos não há maneira de contornar a placa sinalizadora para o advento do anjo da destruição: todos os sistemas imunológicos estão desconectados. A contaminação de corpos, cérebros, lugares e arquivos digitais se torna uma ameaça inexorável. Simultaneamente, a te(n)são sexual, embalada pelo cheiro de suor e ganja, engendrada pelas próteses sensoriais instaladas em homens e mulheres, resulta em desejo, em gozo. Independente do fato de Linda Lee e Molly serem apenas faces do delírio de Henry Dorsett Case, quem pode lhe negar o desfrute do prazer? E então ele estava dentro dela, efetuando a transmissão da velha mensagem. Todos os espaços livres no corpo (literário, político, anatômico) são bancos de dados, são projeções incandescentes – produzidas pelo consumo constante de betafenetilamina (ou o equivalente).

O exibicionismo (o obsceno em seu grau máximo) da vida ordinária, sem sentido, sem propósito, caracteriza a sociedade do espetáculo, a overdose de imagens – onde nada pode ser considerado velado, vedado, vendado ou vetado. Paradoxalmente, tudo se transforma em motivo para o cerceamento das informações. Nada é mais assustador do que perceber que a liberdade –  limitada pelas figuras de retórica, pelo discurso vazio – não passa de alucinação.

A vida de Henry Dorsett Case, segundo Ratz, pode ser resumida em duas frases: Linda para uma tristeza mais doce e a rua para dar o golpe de misericórdia. E o complemento desse drama não envolve compaixão, lastimas, sonhos despedaçados ou quaisquer outros tipos de anestésicos: Você precisava deste mundo construído para você, esta praia, este lugar. Para morrer.

Neuromancer inventa o futuro: caótico, irreal, artificial, fascista, desumano. 

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