As narrativas que compõem Amores, Truques
e Outras Versões, de Alex Andrade, fornecem uma fatia da visão contemporânea a
respeito dos relacionamentos homossexuais em uma grande cidade brasileira. Em tempos não muito remotos a
procura por possíveis parceiros era realizada nas ruas, praças, boates, saunas e
banheiros públicos (cenários descritos detalhadamente em Uma Questão de Vida e
de Sexo, do inglês Oscar Moore, e Trem Fantasma, do brasileiro Carlos Hee). Modernamente,
a exposição pública (e parte dos perigos que envolvem esse tipo de “caçada”)
foi substituída pela assepsia das redes sociais e dos aplicativos de telefone celular –
que localizam rapidamente, em uma determinada área geográfica,os interessados em
compartilhar o prazer. Como diz um dos narradores do livro, Sou escravo de
meus desejos e dependente da vida tecnológica.
A característica mais importante dessa
forma de encarar os relacionamentos sexuais está na completa ausência de afeto. Os
corpos sem identidade (as pessoas inventam tantos nomes, codinomes, apelidos.
Às vezes até eu mesmo me confundo com tanta variedade, porque em certas
ocasiões também esqueço que nome disse ao combinar o encontro.) transitam por Amores,
Truques e Outras Versões como se fossem so(m)bras descartáveis. Cada palavra,
cada frase do livro procura – de forma obstinada – negar o romantismo. Apaixonar-se
significa aceitar a perda do domínio do jogo de sedução. Significa deixar de
lado a irresponsabilidade adolescente (embora os narradores tenham mais de 30
anos!) e enfrentar os terrores da idade adulta. Não há compensação para um
provável desperdício de energia libidinal. Por isso, o simulacro machista do
predador primitivo, sempre atento aos benefícios do hedonismo inconsequente,
não se sente bem quando é impedido de usar e gozar do estoque de ilusões. A
sacanagem é um fast food. A sacanagem é deliberada e entregue no seu quarto, no
escuro, num simples toque de mãos.
No entanto, o acordo tácito entre as
partes, ou seja, a garantia de que não haverá qualquer tipo de envolvimento
emocional (Eu gosto do eterno primeiro encontro, como já disse, cada dia uma
novidade, sempre a primeira impressão. Depois disso, a foto fica desfocada e
você a põe no álbum de recordações), não se mostra suficiente para assegurar
que a experiência ocorra de forma ideal. O assunto que se desenrolava tão
intimo entre as teclas de um aparelho celular ou de um computador perde o
sentido quando a coisa se torna real, quase levando tudo por água abaixo. Por maiores
que sejam os esforços dispendidos para que o encontro sexual ocorra sem grandes
traumas, e que desconhecidos continuem desconhecidos após o ato, não há como
impedir que a sensação de incompletude apareça em cena e confronte as ruínas
físicas e emocionais. Alguma coisa sempre fica faltando. Há muitos obstáculos a
superar. Acho que não curti o cara. A conversa dele estava me dando um
tremendo sono. De súbito virei o copo de suco todo de uma vez só, enquanto ele
falava e mastigava um croissant entupido de catupiry. Fiquei enjoado só de
olhar aquela cena e me veio uma sensação estranha de quem assiste a um filme
desinteressante no cinema, perde o fio da meada, se distrai e passa a observar
tudo o que está ao redor, menos o filme.
Cada experiência ruim serve de estímulo
para outra tentativa: quero mais, quero sempre mais, até que não existam
limites, quero reinventar o desejo. E pouco importa se, nesse percurso,
ocorrerem enganos, armadilhas e decepções. (...) o tesão nunca se encerra, ele
apenas repousa. O que está em jogo são os apetites. E a fome. Faz parte da
fantasia e do contexto parecer sempre a primeira vez, como se também fosse a
última.
O livro, estruturalmente, se divide em
três partes distintas. Em Truques, um narrador em primeira pessoa descreve os
principais acontecimentos de uma vida sexual bastante movimentada. Em Outras
Versões, algumas das cenas relatadas anteriormente se deslocam para o olhar de
vários narradores. Aqueles que foram descritos na primeira parte assumem o relato e fornecem diferentes perspectivas dos fatos. O leitor, diante
desse efeito simultâneo de estranhamento e reconhecimento, percebe o truque
literário. No entanto, cumprindo com a sua parte no pacto ficcional, absorve o
acréscimo de detalhes e significados como se fosse outra narrativa, como se algo
novo estivesse lhe sendo apresentado. A terceira parte, Amores, está
concentrada na patética espera por um amante eventual. A modernidade
tecnológica (telefone celular, Internet) se mostra inútil para compensar a frustração do
sexo que não se realiza. A solidão (sensação física que não pode ser compensada
pelas fantasias virtuais) adquire relevo. Sobra pouco, como observa o narrador, Qualquer
hora amanhece mais uma vez e outras histórias a gente inventa para ter o que
contar. Talvez seja isso, ao final da noite tudo se resume em um punhado de histórias inventadas.
Em alguns momentos o fluxo narrativo,
que flerta com o monólogo interior, fica próximo do discurso. Embora não seja
um defeito significativo,... em menor quantidade, seria
uma qualidade.
As várias histórias encadeadas não
permitem associação com os modelos literários ortodoxos. Há dificuldade para
classificar o livro como um conjunto de contos que se complementam ou uma
novela fragmentada. Paralelamente, deve-se somar às características de Amores,
Truques e Outras Versões o sempre bem-vindo pudor. Livros que falam sobre
envolvimentos sexuais costumam ignorar a discrição e se exceder nas descrições
gráficas. Não é o caso. Felizmente. Há apenas rápidas menções sobre as
travessuras praticadas entre quatro paredes. A literatura agradece.
P.S.: Não se deve julgar um livro pela
capa, mas... Na contramão da falta de imaginação que caracteriza as editoras
brasileiras, a capa e o projeto gráfico de Amores, Truques e Outras Versões marcam pontos a favor.
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