A história da literatura está repleta de
interessantes fenômenos. Um deles (o desaparecimento de escritores que em
determinado momento histórico foram referências obrigatórias), ao mesmo tempo
em que expõe os sempre bem-vindos avanços e recuos da estética, da técnica e das
proposições literárias, também revela um pouco de ingratidão. Não há motivos dignos
de compreensão para justificar o porquê de talentos como O. Henry (pseudônimo de
William Sidney Porter, 1862-1910), Damon Runyon (nascido Alfred Damon Runyan,
1880-1946) e William Somerset Maugham (1874-1965), por exemplo, terem se
transformado em escritores que somente aparecem em cena como espécimes raros, recuperados
em exaustivas pesquisas arqueológicas. Algo semelhante a ossos de dinossauros ou pedaços
de cerâmica grega do século IX antes de Cristo. Em outras palavras, mesmo que eles não façam mais
parte de um mundo que se dissolveu no tempo, a literatura que produziram continua
viva. E isso certamente não será a qualidade a ser destacada em alguns dos
semianalfabetos que povoam o mundo literário atual.
Hector Hugh Munro (1870 - 1916) |
Hector Hugh Munro (1870-1916) também
pode ser citado como um desses casos extremos. Nasceu na Birmânia (atual
Mianmar), filho de pais ingleses. Sua mãe faleceu quando ele tinha dois anos.
Junto com seus irmãos (Charles e Ethel), foi criado pelas tias paternas (retratadas
frequentemente como mulheres amargas, ressentidas e de péssimo humor). Somente
se livrou da opressão familiar quando foi estudar em colégios internos ingleses.
Voltou à Birmânia como membro da polícia. Depois de contrair malária, abandonou
a vida militar. Na Inglaterra, trabalhou em alguns dos mais importantes jornais
ingleses. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, alistou-se outra vez.
Morreu atingido por uma bala na cabeça. Ficou conhecido no mundo literário
através de um pseudônimo: Saki (o nome do serviçal que serve o vinho aos
hóspedes da grande festa retratada nos versos do poema persa Rubaiyat,
escrito por Omar Kháyyám, 1870-1916).
Um Gato Indiscreto e Outros Contos,
edição de 2009, reúne vinte histórias curtas. As mais conhecidas são Um Gato
Indiscreto (algumas vezes publicada como Tobermory), O Contador de
Histórias, O Tigre de Mrs. Packletide, A Janela Aberta (também publicada
como A Porta Aberta) e Os Intrusos. Todas se caracterizam por retratar a
sociedade inglesa, durante o reinado de Eduardo VII (1901-1910). Essa época,
que marca o início da derrocada do Império Britânico (que, depois de um longo
período de dominação e repressão em diversas partes do mundo, não teve fôlego
para resistir às duas guerras mundiais e às centenas de revoltas coloniais),
serve de espelho para um código de comportamento baseado nos valores
aristocráticos, na fleuma e, sobretudo, na aparência. Os contos de Saki,
repletos de situações inusitadas e cômicas, constituem uma instigante
radiografia desse mundo social, econômico e cultural.
Tons de “nonsense” e de realismo
fantástico aparecem no conto Um Gato Indiscreto. Ao adquirir a fala humana, o
gato Tobermory (arrogante, cínico e mordaz) ameaça a estabilidade de um grupo
de amigos. Se ele sair pelo mundo, contando certos fatos que ouviu ou
presenciou, não será possível conter a desgraça de todos.
Bertie van Tahn, que fora tão depravado aos dezessete anos que há muito desistira de tentar ser pior, ficou de uma matiz opaca de branco-gardênia, mas não cometeu o erro de correr da sala como Odo Finsberry, um jovem cavalheiro que sabiam estar estudando para a vida eclesiástica e que estava possivelmente perturbado pela ideia dos escândalos que poderia ouvir sobre outras pessoas. (trecho de Um Gato Indiscreto)
Esse recurso estilístico, misturar o "real" com o fantástico, também
aparece em Gabriel-Ernest, contraponto entre a civilização e a barbárie, e em Esmé, que projeta o macabro como seu elemento principal.
Há outras situações incomparáveis na
literatura de Saki, como a greve dos serviçais (A Omelete Bizantina), os
apuros de um adolescente diante de rivais violentos (O Estrategista), a
vaidade contraposta com o preço a ser pago pelo teatro social (O Tigre de Mrs.
Packletide), a luta moral entre o desejo infantil e a selvageria adulta (Srendi Vashtar)
e o horror – em grau absoluto – revelado sem filtros (Os Intrusos).
Em muitos momentos, as personagens de
Saki ambicionam por um grau de pertença social que não se concretiza. Ao falhar
em seus propósitos, o jogo das aparências, do faz-de-conta, se dilui. Tornam
público o que há de mais nocivo em suas personalidades. E isso, além de ser
inadequado, mostra o quanto o ser humano é patético. Impossível não rir com tamanho
desacerto.
Saki (ou Hector Hugh Munro) continua
atual, dolorosamente atual. Infelizmente, o humor que emana de seus contos raramente pode ser
encontrado na literatura mais recente. Talvez ele não seja um bom exemplo de um tipo de texto que se
perdeu nas brumas do tempo. Talvez ele seja o reflexo da falta de prazer (de escrever, de ler)
que habita o mundo contemporâneo.
Munro e sua família |
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