Foram
duas sessões de leitura. A primeira, dentro de um ônibus, trajeto
Florianópolis-Lages. Unindo a noite chuvosa e a dificuldades para dormir quando
em viagem, foi fácil desaparecer dentro da narrativa por cerca de três horas e
meia. A segunda sessão foi muito mais prosaica. Na tarde seguinte, as últimas
setenta páginas foram consumidas com sede e fome.
Chamado
tantas vezes de enfant terrible (embora não possa ser considerado um enfant e tampouco seja terrible), o escritor francês Michel Houllebecq, com o passar
do tempo, se tornou – apenas – assustador. Não é pouco. Mas não é o suficiente.
A vida contemporânea exige um pouco mais. Ou melhor, muito mais. E a literatura
produzida por Houllebecq se tornou uma das maneiras de contemplar o abismo. Por
isso, além de meia dúzia de outras razões (algumas, importantes; outras, banais),
é difícil encontrar o elogio adequado para sintetizar o grau de prazer que
advém da leitura de seu romance Submissão.
O
protagonista e narrador, François, um especialista na literatura escrita por Joris-Karl
Huysmans (1848-1907), é professor adjunto na universidade Paris III-Sorbonne,
onde ensina literatura do século XIX. No âmbito particular, macera, com obstinada
altivez, a própria solidão. Com poucos amigos, sem acumular ilusões ou
perspectivas amorosas, políticas e econômicas, ele contempla o mundo. Ou melhor,
aguarda o fim do mundo. Que ocorre – em sentido figurado – quando um político
de origem muçulmana, Mohammed Ben Abbes, se torna presidente de França. A bolha
de sabão onde François havia se encapsulado arrebenta. Não é mais possível
continuar passeando despreocupadamente pela zona de conforto, apesar da visível
alienação, (...) eu agora aspirava apenas a ler um pouco, a me deitar às
quatro da tarde com um maço de cigarros e uma garrafa de bebida forte, mas
também devia reconhecer que nessa toada eu ia morrer, morrer depressa, infeliz
e só, e será que eu tinha vontade de morrer depressa, infeliz e só? Em última
análise, mais ou menos.
As
mudanças ocorrem com singela rapidez. O novo governo estabelece uma série de
medidas que afetam a estrutura social de França. Uma das áreas mais afetadas, a
educação, sofre várias transformações – inclusive a islamização dos currículos
e do sistema de ensino. Em consequência, a vida profissional de François
desmorona – ele aceita se aposentar prematuramente. Com tempo livre, viaja pelo
país. Não encontra prazer nesse deslocamento sem critérios ou alegrias. O que imaginava
ser afeto, se dissolve. Sendo, em essência, um misógino (como foi Huysmans), tem
dificuldades para superar a perda da última de suas amantes, Myriam, de origem
judaica, que, temendo pelo futuro, foge para Israel. Ele sente saudades daquela
com quem teve alguma intimidade (em um nível emocional menos mecânico do que o
gerado pelas incontáveis prostitutas que contrata). Em algum momento, entre o
desespero e o ócio, tenta obter alguma forma de inspiração religiosa – seguindo
os passos de Huysmans, que migrou do satanismo para o catolicismo. Em um mosteiro, percebe o óbvio: Na manhã do
terceiro dia entendi que precisava ir embora, aquela temporada estava fadada ao
fracasso.
A
conversão mística ocorre por outros meios. Mefistófeles sabe que as almas mais austeras
se transformam em doçura quando recebem presentes – a beleza das embalagens
superando o conteúdo. Em outras palavras, obstáculos que pareciam
intransponíveis desmancham com a mais suave brisa – principalmente porque as “luzes”
da modernidade não possuem autonomia energética. Cinicamente, a narrativa tem
como mensagem principal informar que todo ser humano está à venda e que as
diferenças entre o certo e o errado se resumem em acertar o pagamento (não
necessariamente em dinheiro).
A
mensagem subliminar do texto informa ao leitor que acabou o tempo da política.
Diante da autofagia, nada mais resta a fazer. Não há mais lugar para o embate
ideológico ou para o predomínio da razão humanitária. Enquanto a direita e a
esquerda se digladiavam por um pedaço imaginário de carne (os votos da
população), outra forma de pensamento político (o fundamentalismo religioso) se
infiltrou no tecido social e assumiu lentamente o controle do espaço abandonado.
Por isso, contemplar os destroços ou aderir ao novo ordenamento, não importa
qual seja a escolha,é apenas um ato sem substância. O que se perdeu não pode mais
ser recuperado. (...) a nostalgia nada tem de sentimento estético, tampouco
está ligada à lembrança de uma felicidade, somos nostálgico de um lugar
simplesmente porque ali vivemos, bem ou mal, pouco importa, o passado é sempre
bonito, e o futuro também, aliás, só o presente é que faz mal, (...).
Alegoricamente, alguns trechos de Submissão parecem ter sido escritos especialmente para a realidade brasileira
contemporânea. Ao retratar, de forma impiedosa, o completo desrespeito aos
ideais republicanos (pelos profissionais políticos) e a apatia diante de
questões de suma importância social (pelos eleitores), o romance sugere que a
democracia e o processo eleitoral se tornaram ferramentas inúteis, que estão
destinadas a serem manipuladas por interesses obscuros. Em consequência, em algum
momento, provavelmente não muito distante, alguma força irracional vai irromper
e corroer a estrutura que acreditamos ser estável. E isso ocorre, na atual
conjuntura, porque todos os indivíduos, eleitores ou não, estão preocupados demais em
salvar as próprias demandas. Não lhes resta força de vontade para o envolvimento
em questões de interesse coletivo. A ganância da classe média alta, com seus sonhos
de consumo desenfreado, adquire solidez a cada dia. A distribuição
das riquezas causa medo. Para tentar se proteger dessa ameaça, aqueles que
acreditam ser superiores aos seus semelhantes endossam valores como a meritocracia
e a divisão de classes econômicas, culturais e raciais. Além disso, escolhem líderes manipuladores, que
utilizam um discurso inócuo, sem conteúdo, para persuadir novos seguidores – aqueles
que desconhecem o funcionamento da estrutura política.
A
grande qualidade de Submissão está na facilidade com que flui o texto. A
leveza narrativa e a técnica descritiva praticamente impedem que o livro seja
abandonado pelo leitor. As primeiras cem páginas são divertidas. Sob a forma de comédia de costumes, uma ironia
fina escorre pela realidade supérflua que caracteriza a modernidade. Nas
outras páginas, o livro está focado em questões mais sérias. Talvez sérias
demais para um relato ficcional. De qualquer forma, ninguém resiste a uma
narrativa profética.
Como sempre, gostei muito do estilo deste autor professor porue consegue nos prender a atenção com sobriedade e clareza original.Com toques de humorismo bem comportado, o leitor consegue ficar por dentro da narrativa abordada pelo autor, ganha em conhecimento e se diverte. MPerez. 03/07/16 - Rio.
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