Páginas

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

O DIA EM QUE MINHA VIDA MUDOU (II)


O cérebro de Mia se parece com um formigueiro. Centenas de ideias trabalhando simultaneamente, em vai e vem frenético. Obviamente, essa agitação só existe dentro da cabeça da menina. Mia tem onze anos, estuda no sexto ano do ensino fundamental, e está naquela fase em que a aceitação social define o abismo que separa a felicidade e o fim do mundo. Resultado óbvio: começa a imaginar todo tipo de situação desfavorável.       

Mia, protagonista da série infantojuvenil O dia que minha vida mudou, escrita por Keka Reis, é uma espécie de Drama Queen – e se isso não se parecer com um elogio, o melhor a fazer é trocar de metáforas, de formas de olhar, ou melhor, de ler, e naufragar nesse absurdo lírico que são as suas divertidas aventuras. Sim, é isso mesmo, os dois primeiros livros estão imersos no humor e nas confusões.  

O colégio organizou uma viagem de estudos.  Em algum momento, a excursão vai passar por Santa Rita do Passa Quatro, cidade que fica no estado de São Paulo, região metropolitana de Ribeirão Preto. Lá ocorrerá o desfecho. Mas antes, bem antes, há um sem número de equívocos, de exageros. Nada de anormal, a vida (seja adulta, seja pré-adolescente) é assim mesmo, uma linha contínua de desentendimentos.

São dois ônibus, uns cinco ou seis professores e uma multidão de crianças. A bagunça impera. Simultaneamente, o grupo de whatsapp produz insuportável pressão psicológica. Todos leem as postagens – e ninguém se importa em verificar que interesses existem por trás de cada mensagem. O império das fake news não possui compaixão, sua razão de ser está em causar algum tipo de terrorismo social.


Tia Ucha vive dizendo que a minha cabeça pensa rápido demais. Vai longe. Muito longe. Eis o resumo da situação. Mia, que possui um talento incomum para transformar qualquer incidente em tragédia, examina os problemas por vários ângulos, se atrapalha nos detalhes, aumenta as dificuldades, e não chega a qualquer resultado satisfatório. Ou melhor, acaba com dúvidas maiores do que no início da reflexão.

Surtar surge como uma reação natural contra as barreiras produzidas pelo mundo objetivo. Mia não foge da regra. Várias vezes. Nos momentos básicos se tranca no banheiro do ônibus e chora. Chora várias cataratas do Iguaçu. É lágrima para ninguém colocar defeito. Algumas pessoas possuem o dom de realizar um tipo especial de milagre: transmutar duas ou três gotas d’água em tsunami. E se afogam em terreno raso.

Na hora do desespero, arremessar o celular contra uma árvore pode ser um alívio. Nada contra a modernidade tecnológica. A dificuldade está nos temores psicológicos. Ter um namorado, com N maiúsculo, está longe de ser o mar da tranquilidade. A cada instante, um empecilho. Assistir vídeos educacionais com os pais é um deles, beijar é outro (e se for ruim?, e se ainda for muito cedo para dar esse passo?).

Ao longe, outro obstáculo. Quem é ELE (assim mesmo, em caixa alta), o motoqueiro que leva a mãe para comer sushis fantásticos? Alguma coisa está acontecendo, o que será? Mia tem dificuldade para entender que ela e a mãe estão vivendo em um tempo de mudanças. Ou melhor, em um tempo perfeito para trocar de medos. Por exemplo, dormir fora de casa, longe da proteção materna, assusta. Mas também aponta para um outro caminho, longe da zona de conforto, repleto de boas surpresas.

Também assustam os colegas de sala de aula (Jade, Júlia F., Enzo, Lico), os professores (Airton, Haydée e Joca), a orientadora da escola (Penélope). O horror tem várias formas e formulas. Ninguém está imune. Mas, o maior motivo de apreensão tem o sorriso mais lindo do mundo e gosta de segurar na mão de Mia. O amor ultrapassa a soma de quatro letras. Namorar apavora – aos onze e aos sessenta anos. Difícil manter a serenidade nesses momentos.

O dia em que minha vida mudou por causa de um pneu furado em Santa Rica do Passa Quatro, assim como O dia em que a minha vida mudou por causa de um chocolate comprado nas ilhas Malvinas, está centrado em questões relacionadas ao mundo particular das mulheres. Talvez seja essa a melhor das inúmeras qualidades dos livros. O mundo literário está repleto de espelhos da masculinidade. É hora do empoderamento feminino. É hora da inclusão.

Mas também é hora de celebrar os ritos de passagem, essa estrada estreita que leva a inocência até a maturidade. Também é hora de perceber que tomar decisão não se resume em eleger A ou B ou C. Os riscos – em todas as hipóteses – são enormes. Escolher corretamente significa escapar da areia movediça, dos campos minados, dos perigos do autoengano.      

Depois que termina a leitura de O dia em que minha vida mudou por causa de um pneu furado em Santa Rica do Passa Quatro, o leitor fica querendo mais. Como personagem, Mia consegue cativar. Talvez porque (desse jeito dela, um pouco atrapalhado) projeta bons sentimentos. E nos faz lembrar que houve um tempo em que a vida era mais divertida e terminava em finais felizes.


PS 1) O primeiro livro da série, O dia em que a minha vida mudou por causa de um chocolate comprado nas ilhas Malvinas, que está concorrendo ao Prêmio Jabuti 2018, foi adaptado para o teatro.
PS 2) O conteúdo dos dois livros ficou ainda mais bonito com as ilustrações de Vin Vogel.


TRECHO ESCOLHIDO

 

A verdade é que eu tenho medo. Muito medo. De várias coisas. Eu tenho medo de cachorro, filmes e histórias de terror terríveis, tsunami de verdade, palhaço, aquecimento global... Mas, acima de tudo, eu tenho medo de dormir fora de casa. Era isso que estava me apavorando.

 

Enquanto todos os meus amigos comiam bananinhas sem açúcar ou faziam planos mirabolantes para as três noites que iríamos passar fora de casa, eu tinha pensamentos horríveis. Vontade de chorar. E medo de contar para qualquer um deles que nunca tinha dormido longe de minha mãe. Nunca, nunquinha. Desde o primeiro ano, ficava esse vai e vem de amigas fazendo festa do pijama, uma na casa da outra. Para mim era sempre uma tortura. Mas eu já tinha descoberto um jeito de me livrar que tinha dado certo até aquela hora. Até aquela hora. Eu falava que ia, participava de todas as conversas e planos, me empolgava de verdade verdadeira. Mas quando o dia de dormir fora chegava, a minha mãe ficava doente. Ou a minha avó resolvia fazer um jantar-surpresa para mim. Ou eu ficava doente. Ou a minha mãe contava uma das suas mentiras toleradas e dizia que tínhamos uma emergência de família.

Um comentário: