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terça-feira, 19 de outubro de 2021

VICTOR

 


A ironia é o biscoito fino da modernidade. Embora se confunda, algumas muitas milhares de vezes, com cinismo ou sarcasmo. Ou piada sem graça. Ou mau humor. Questões de sabores e condimentos. Pedagogia do paladar. Estou lendo o livro póstumo de Victor Heringer (organizado pelo Carlos Henrique Schroeder). Uso marcador de página da dupla Calvin & Hobbes. Victor e Calvin & Hobbes constituem parte do meu paideuma (talvez mãe de outra). Fundir palavras e imagens muitas vezes significar fuder com a estabilidade. Sem palavrão, não há solução. O caos como elemento ordenador. Abrir uma janela para ver a luz. Metáforas estendidas no varal das palavras. Abalos sísmicos nas certezas. Lentidão de lava escorrendo na direção do vilarejo. Sem pressa. Ou pressão. Tudo é poesia antilírica (a fila anda. eu ando atrás. não sei do quê). A bandeira de Manuel acenando ao longe, antídoto contra a monotonia. Alguém sustenta a tese de que aquele que escuta nem sempre escuta o que foi dito. O mesmo se pode dizer sobre o que está escrito. É preciso ter olhos e ouvidos para se movimentar na areia movediça que Victor (contaminado pelo machado do Assis) escreveu. Poucos conseguem entender o que significa usar os sapatos do pai. As dificuldades em cada passo. Os empecilhos no trafegar (traficar) nessa estrada que leva o nada a lugar nenhum. Escrever é uma forma de não se sentir perdido – embora tudo signifique perdição e pecado e ausência e solidão. Abundância de matéria-prima para preencher o mundo com autoficção. Enquanto sobra fôlego, crônicas – esse gênero menor, potência exponencial. Não devo ter trocado meia dúzia de palavras com Victor, que não tive o prazer de conhecer pessoalmente. As redes sociais são teias que unem aranhas e moscas no mesmo ritual primitivo. Elogiei dois ou três textos, que apareceram aleatoriamente na tela do computador. Talvez ele tenha respondido, não recordo, não recorto essas coisas, a vida é muito curta para adotar resumos como se fosse um desses romances intermináveis, infinita descrição de pormenores, ecos menores de algo a que não se tem estimação, exceto como literatura – ou seja, questiúnculas de suma importância. Sumo e soma, como Aristóteles sabia e dizia – sem escrúpulos – aos seus socráticos discípulos, em um daqueles catataus que a gente lê aos pedaços, talvez para cumprir com alguma tarefa acadêmica, talvez para dar uma demão no verniz intelectual nosso de cada dia. O fato básico é que não há interesse na vida. Vida desinteressante. A tristeza inescapável. Ou o contrário. O curto-circuito como leitmotiv. Vai ver que é assim mesmo, esse estranhamento que faz as palavras escorregarem para debaixo do tapete, um medo de amar, sei lá, somos homens avulsos. E nos escondemos atrás dos sentimentos que fingimos não ter. Sombras de Pessoa. A revista, não o amanuense. Mas que, sincronicamente, parece estar no mesmo flow, flor do jardim perfumado que cultivamos entre bibliotecas e sonhos e as (inexistentes) virtudes da vida virtual (viral), basta um movimento no mouse e os signos (clique aqui para fotos de gatinhos) surgem diante dos olhos, milagres da tecnologia  essa moenda (moeda) da inteligência. Lá pelas tantas é que as coisas costumam acontecer, o inusitado alimenta o espanto, quem lê Calvin & Hobbes ou Victor sempre encontra esse espetáculo no quadrinho seguinte, na frase seguinte. A máquina fotográfica não sacia essa vontade de lembrança total. Talvez seja possível, em um desses delírios oníricos que tumultuam as noites e os dias, se enfurnar num monastério. Não acredito muito em Deus, mas não importa; é só um detalhe.   

Victor: o fim do mundo foi meio sem graça.

 

Victor Doblas Heringer (1988 - 2018)


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