Páginas

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

DECLARAÇÃO DE INTENÇÕES

 


No corpo da cidade estão escondidas muitas histórias. Basta ter sensibilidade para ver e ouvir o que está presente nas ruas, praças, esquinas, vielas, rodovias, dentro das casas, na área rural. Algumas dessas histórias são tristes; outras, alegres. Algumas envolvem multidões; outras, confusões. Algumas nos afastam do mundo objetivo; outras, o tornam suportável. Todas espelham um conjunto de sentimentos que se desloca entre o humano e o fantástico, o sagrado e o profano, o extraordinário e o banal.

A mulher que passa, a mudança das estações do ano, a crise econômica, as vozes daqueles que já não estão entre nós, a chuva repentina, os relacionamentos tóxicos, sonhos, perdas, vizinhos, amor, uma ou várias músicas, filhos, sustos que não passam – tudo é aroma da madeleine molhada no chá de tília. Momentos que dão colorido à vida. E que, de uma forma ou de outra, multiplicam-se no imaginário popular. Quem conta um conto, aumenta um ponto. Na vida não há desconto. Embora algumas situações estejam em permanente liquidação. Viver é perigoso. Muito.

Ao cronista cabe transformar em texto as histórias que chegam ao seu (dele) conhecimento. Ou que ele inventou. Entre o que ouviu e/ou observou ou imaginou existem muitas dificuldades. Hiatos, lacunas, interstícios, entrelinhas, névoas. Na tentativa de resolver os impasses, usando e abusando das liberdades criativas, a solução mais fácil é misturar o que aconteceu com o que gostaria que tivesse acontecido. Funciona – às vezes. Curtos-circuitos fazem parte do show.

O texto precisa ser fluído, capaz de atrair a atenção do leitor da primeira até a última linha. E deve usar uma linguagem acessível, sem expressões que possam causar problemas no entendimento. Cabe evitar palavras em língua estrangeira. Em nenhum momento é apropriado citar bolachas francesas, poemas e jagunços. O distinto público raramente consegue alcançar a extensão das referências literárias e cinematográficas. Melhor usar exemplos da novela televisiva ou do reality show da moda. São recursos que fazem mais sentido, embora (segundo reza a lenda) conduzam em direções contrárias ao esclarecimento.

Outra coisa, a modernidade não tem fôlego para ler textão. Há quem acredite que mais de 500 palavras é aventura destinada aos maratonistas quenianos. Então, por livre e espontânea pressão, a síntese se faz necessária. E isso não é fácil de conseguir. Exige técnica e suor. Ninguém consegue escrever crônica com a mesma naturalidade com que respira. Frequentemente falta ar. Falta tubo de oxigênio. E o texto morre por asfixia. Ou por abandono. Sempre há algo mais interessante para ser visto e/ou lido nas redes sociais. O entretenimento é a chave do sucesso.

Dito isso e omitido aquilo, cabe perseguir o texto onde a palavra exata não seja exceção. Enquanto isso não acontece, e não sei se será possível algum dia, resta continuar tentando. Fracassar outra vez, fracassar melhor. Talvez esse seja o dístico (lema, slogan) adequado ao cronista. E ele que se contente com esse quinhão ou vá plantar batatas no asfalto com enxada de borracha.

A crônica de hoje embrulha o peixe de amanhã, diziam em outros tempos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário