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terça-feira, 15 de março de 2022

O CASO DA LAREIRA

 


Durante muito tempo a principal rota de comércio entre o Rio Grande do Sul e São Paulo passava pelo Planalto Catarinense. Isso talvez explique porque, por motivos variados, muitos viajantes se fixaram na região. Alguns desses personagens eram, na falta de expressão mais apropriada, diferenciados.  

O médico e engenheiro Reuben Cleary escolheu o Brasil como local de residência após a derrota das tropas do General Robert Edward Lee, na Guerra de Secessão estadunidense (1861-1865). Não foi um caso isolado. Centenas de ex-soldados confederados, descontentes com o resultado do conflito, imigraram para a América do Sul. Uma parte significativa se estabeleceu no interior da (então) província de São Paulo – principalmente na região onde está localizada a cidade de Americana.

Quando chegou em Lages, em 1869, depois de rápida temporada no Rio Grande do Sul, Reuben Cleary começou a clinicar e, em seguida, se casou com Guilhermina Schmidt. Durante cerca de 20 anos exerceu a medicina e a engenharia na região (o primeiro projeto do Mercado Público é de sua autoria). Esse período de sua vida está registrado em um manuscrito de 200 páginas, Brazil Under Monarchy, que pode ser encontrado na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. Em um dos capítulos do texto ele faz algumas considerações sobre o período em que residiu na cidade (mas, como todos os outros viajantes que escreveram sobre Lages, são raros os elogios).

Em determinado trecho da narrativa, Cleary comenta sobre o desconforto causado pelo frio bastante severo. Além da precariedade das casas de madeira, entendia que era inconcebível a inexistência de lareiras. Ao constatar a impossibilidade de trabalhar no consultório/escritório durante o inverno, resolveu mandar instalar uma.

Esforço em vão. Os pedreiros não conseguiam executar o que estava sendo requerido. O nível de desentendimento entre as partes era de tal ordem que parecia que ele estava pedindo para construírem uma das pirâmides do Egito ou algum outro monumento colossal. A cada momento surgiam dificuldades, obstáculos a ser transpostos, material que sumia.

No limite da tolerância, ou melhor, sem paciência, Cleary decidiu construir a lareira (com chaminé) pelas próprias mãos. Ou quase isso, porque deve ter tido algum tipo de ajuda, mas sempre de forma precária.

O resultado dessa aventura é que a sua família desfrutou do aquecimento que era inacessível aos demais moradores da cidade. Mesmo assim, o projeto foi considerado coisa excêntrica, uma anomalia que desperdiçava tempo e dinheiro com algo tão estranho aos costumes regionais.

Por motivo não identificado, Cleary precisou se mudar. No verão, a casa foi ocupada pelo juiz do distrito – que, sem nenhum constrangimento, mandou destruir a lareira. Alegou que não precisava daquilo e que o espaço poderia ser ocupado com algo mais importante.

No inverno seguinte, mais rigoroso que o anterior, o juiz foi obrigado a se esquentar precariamente. Nas palavras de Cleary, sentando-se perto de um recipiente com carvão de lenha ardendo, embrulhado em seu poncho e inalando o ar com gás carbônico.




P.S.: A história da cidade reviveu episódio similar quando um empresário mandou instalar calefação central em sua casa nos anos 70 (talvez 80) do século XX. Não faltaram detratores a dizer que ele era um esbanjador e que esse tipo de conforto não condizia com a realidade brasileira (e lageana).

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