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segunda-feira, 28 de março de 2022

CENTENAS DE GIBIS (texto modificado)

 


Eu tinha nove ou dez anos. Meu irmão, cinco ou seis. Em razão de um acontecimento inesperado, no final dos anos 60, decidiram que nós dois deveríamos dormir na casa do patrão do pai. Os dois meninos – que nunca tinham se separado da família – estavam naquela idade que acolhe qualquer fuga da opressão doméstica com rapidez.

Não aconteceu nada de excepcional – de modo geral. Lá pelas sete horas da noite, nos deram comida e nos mandaram dormir. No quarto, encontrei uma pilha de gibis. Não eram cinco ou quinze. Nada disso. Na compreensão do mundo que eu tinha naquele instante a quantidade era inimaginável. Mais de trezentos. Muito mais. Tio Patinhas, Donald, Mickey, Batman, Super-Homem, Homem-Aranha, Popeye, Sobrinhos do Capitão, Luluzinha, Zorro, Fantasma, Flash Gordon, Capitão América, Tarzan, Recruta Zero, e várias revistas do meu personagem Disney favorito: Peninha.

Fiquei assustado. Nunca tinha visto tantos gibis em um único lugar. Nem na banca de revistas a variedade era tão grande. Na nossa família, classe média baixa, quatro filhos, nunca sobrava dinheiro para esse tipo de entretenimento. Em períodos de fartura, podia-se, no máximo, ir ao cinema – e não era toda semana. O usual era trocar as poucas revistas em quadrinhos que tínhamos por outras ou emprestar dos amigos. Mas essa segunda hipótese sempre se mostrava problemática, em algum instante a cobrança aparecia e nunca estava revestida de alegria. 

Meu irmão, cansado, dormiu rapidamente. Eu, ao contrário, estava desperto. Com medo de mexer no que não me pertencia, fiquei olhando para aquela montanha de diversão o durante muito tempo, quase uma eternidade. Depois de muito relutar, venci a timidez, sai do quarto e, diante do primeiro adulto que encontrei, pedi permissão para ler uma ou outra daquelas revistas. Expliquei que estava sem sono e que talvez assim conseguisse dormir mais fácil.

Fique à vontade, foi o que ouvi. Voltei ao quarto e... Quase passei a noite em claro! Queria aproveitar ao máximo aquela oportunidade mágica. Li todos os gibis que me foi possível. Não lembro quais, nem quantos. Cada um mais interessante do que o outro.

Em algum momento, o sono venceu a luta. Dormi com a luz acessa – que talvez alguém tenha apagado durante a noite. Quando nos acordaram, lá pelas oito da manhã, um dos gibis ainda estava preso na minha mão.

Tive vontade de chorar. Não me importei em ter que voltar para casa. Naquele tempo, já tinha consciência de que a família é uma cicatriz com que temos que conviver. O que me entristeceu foi não poder levar comigo as revistas em quadrinhos.

Foi uma experiência única. Nunca mais voltamos àquela casa.


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