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domingo, 3 de abril de 2022

DICIONÁRIO DO PLANALTO SERRANO

 


Recentemente, em conversa de trabalho, alguém usou a expressão: tô te escorando! Escorando? Essa palavra, com o significado de enfrentar, se opor, praticamente deixou de existir no vocabulário regional. Na mesma semana foi possível ouvir, em comentário sobre algum tipo de conflito familiar, que a esposa queria guelar o marido.

As duas situações acenam para uma particularidade: os habitantes do Planalto Serrano, em algum momento, utilizavam um dialeto quase incompreensível para o restante do estado de Santa Catarina. Quase não utilizam mais. Ou melhor, raramente usam de alguns termos que não correspondem à cultura letrada, essa que a modernidade quer impor como um padrão de uniformidade e de dominação.

Ao longo do tempo, a linguagem coloquial (influenciada por um mundo rico em significados e alusões muito particulares – história, geografia, economia, história e influências temporais) sofreu um processo de transformação que separou algumas coisas e impediu a visibilidade de outras. O aumento da complexidade do tecido social (principalmente nas relações urbanas) reprimiu os ruídos produzidos pela linguagem popular nas áreas fonéticas, morfológicas, sintáticas e lexicais. Ou seja, domesticaram as diferenças sociolinguísticas. Com isso, o universo vocabular regional sofreu um processo de apagamento e quase foi extinto.

A língua falada, descrita, observada e a analisada em situações reais de uso, foi encaixotada pela norma culta, ou seja, pela gramática. Os principais fatores que contribuíram para essas mudanças são o aumento do nível de escolaridade da população, influências da televisão e da Internet e o preconceito linguístico (não necessariamente nesta ordem). Expressar o pensamento de forma diferente da normatização se tornou motivo para reprimendas ou piadas. Em outras palavras, a linguagem oral foi sendo – lentamente – tiranizada pelo ordenamento gramatical, que não admite grafia ou prosódia diferente daquela que está autorizada pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP).

A organização de um pequeno dicionário com algumas das expressões usadas pelos habitantes do Planalto Serrano constitui uma tentativa de conter o processo de soterramento linguístico. Nada muito complicado ou acadêmico, mas que seja versátil o suficiente para abranger e explicar as raízes da linguagem que antecedeu à organização da vida contemporânea e que é (ou foi) uma das características dos habitantes do Continente das Lagens (como diria Licurgo Costa).

Assim, expressões como bombiar, jaguara, djaoje, tresantonte, omi-du-céu, malemá, divereda, incarangado, desacorçoado, encuerado, sumanta, minhazarma, incanzinado, liviano, divardi, picá a mula, de sartá us butiá du borço, entre outras, não se perderiam na selva da linguagem asséptica das padronizações, tampouco deixariam de existir nos mecanismos de comunicação entre os indivíduos. 

Mas, é preciso ressaltar que esse tipo de projeto não deve ser visualizado como reserva de mercado, culto ao passado ou ao folclore. Também não se trata de uma reação ao processo de cooptação linguística promovido pela cultura estadunidense, que está substituindo palavras e conceitos por expressões alienígenas à história sociolinguística do Brasil. Ao contrário, trata-se uma proposta de inclusão, de multiplicar as possibilidades de comunicação social, de permitir que a criatividade seja mais forte do que o engessamento linguístico.

Iniciativas similares (catalogar os dialetos regionais) foram realizadas – com sucesso – em Porto Alegre, Florianópolis e em quase todas as capitais do Nordeste.

Está na hora de recuperar o vocabulário do Planalto Catarinense. Um dicionário específico talvez ajude.

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