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segunda-feira, 10 de outubro de 2022

NEWTON



Kafkaniano. Não há dificuldade em encontrar o adjetivo adequado. O obstáculo está em explicar o que existe de perturbador em Newton (São Paulo: Fósforo, 2022), de Luís Francisco Carvalho Filho.

O Estado, máquina aniquiladora das individualidades, tritura tudo o que fuja dos procedimentos regimentais. As leis, instrumento máximo do poder opressor, em lugar de estabelecerem regras para o comportamento social, se transformam em braços tentaculares das ações punitivas. Tudo o que não estiver devidamente regulamentado na legislação precisa percorrer caminhos árduos para adquirir substância – correndo o perigo de ser enquadrado nos dispositivos penais por desvio da norma.

Newton, o protagonista da novela homônima, adotou uma postura inusitada. Seja por idiossincrasia, seja por desobediência civil, resolveu revogar o passado. Ou seja, se despiu de sua gênese, de sua história, dos laços familiares. Disposto a viver à margem, não quer manter rastros identificáveis. Sem documentos, sem contas bancárias, acredita que estar vivo basta. Quer que o seu único contato com o mundo seja através dos textos que publica em um blog ou em livros.

Em algum momento, Newton comete um descuido (uma postagem sobre animais domésticos). Essa insignificância (potencializada por interpretação inadequada) desencadeia uma série de ações que revertem a invisibilidade desejada. Semelhante ao enredo de Der Prozess, mas com características provinciais, entra em cena o horror. Soterrado por uma avalanche de procedimentos policiais e jurídicos, que exigem informações, papéis, testemunhos, Newton conclui que o Estado quer que o indivíduo participe de um jogo viciado – e que dispõe de regras, muitas vezes, mutáveis. Caso contrário, será visto como uma aberração.

A narrativa, com grande dose de humor negro, amplia o absurdo. Dividida em 17 pequenos capítulos e estruturada no diálogo (próximo do texto teatral), diluí um dos elementos essenciais da literatura contemporânea, o narrador. Mas essa falta não compromete o enredo – ao contrário, o torna mais eficaz, porque apresenta uma proposta visual e tátil, onde o leitor consegue perceber a angústia e a violência em cada fala, em cada gesto dos personagens.

Nas conversas, os interlocutores não conseguem encontrar qualquer ponto em comum. Em nenhum momento do texto existe sintonia. Os personagens falam para as paredes – ou para o leitor –, mas nunca entre si. E isso ocorre porque Newton, guiado por suas convicções, recusa qualquer tipo de conciliação.

O mecanismo repressivo usa essa postura como combustível para se tornar mais ativo, mais cruel. Depoimentos na delegacia, investigação da polícia federal, processos judiciais – a lista de acusações se multiplica e exige que advogados surjam como intermediários entre o inferno burocrático e o sossego. Evidentemente, nada se resolve (seja pela lentidão do mecanismo jurídico, seja porque o caso precisa constituir um modelo exemplar contra aqueles que ousam desafiar as instituições).   

Dentro do labirinto, acuado por todos os lados, Newton se torna vítima de procedimentos que não possuem compaixão, que não querem compreender os argumentos que lhes são contrários. A condenação, antes do julgamento, não demora.    

Na cena final, desfecho quase óbvio de uma sucessão de insanidades, a lição darwiniana surge cristalina: somente sobrevivem aqueles que se adaptam ao meio, os que se submetem à servidão voluntária. 

Narrativa asfixiante, incômoda, nonsense – mas, particularmente, verossímil –, Newton comprova que a tragédia costuma acompanhar o mundo jurídico brasileiro.  

 

 

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