Durante alguns meses, em 2020, participei de um grupo de WhatsApp com pessoas que estudaram comigo no segundo grau. A ideia geral era fazer uma reunião festiva – alguns meses depois – para reencontrar os dinossauros, digo, os sobreviventes. Estamos todos na faixa dos 60 anos e não seria surpresa se alguns já estiverem usando bengala, tomando mil remédios (pressão, diabetes, próstata, doenças cardíacas) e oferecendo aos netos o carinho que recusaram aos filhos.
O encontro não se realizou em função da pandemia. Ou, se aconteceu, dele estive ausente. Estava (estou) em outra sintonia. Para o bem ou para o mal, depois de algum tempo, decidi me afastar do grupo. Diversos motivos, inclusive os políticos. Não os reconheço como interlocutores. Não me reconheço como um deles.
Tenho lembranças nebulosas do tempo escolar em que frequentei o Colégio Industrial de Lages. Minha família estava fragmentada e o dinheiro que a minha mãe conseguia ganhar com trabalhos aviltantes só servia para pagar o aluguel e a comida. Além disso, para ajudar na confusão, várias vezes estive próximo de perder a microbolsa de estudos que recebia da escola. Um dos episódios mais significativos, e que me causou muitos aborrecimentos, ocorreu quando decidi que não iria frequentar as aulas de educação física. O professor, adepto entusiasmado do atletismo, exigia que os alunos fizessem corridas de vários quilômetros, subindo e descendo morros íngremes, incentivava arremessos e saltos diversos, queria formar campeões. Era o horror – principalmente para quem queria ficar sozinho, ou, no máximo, na companhia dos livros. Resumindo: naquelas aulas, onde predominava o espírito solar, não havia lugar para alguém que vivia no mundo da lua.
As aulas regulares ocorriam pela manhã e o ensino profissionalizante era ministrado no período da tarde. Poucas escolhas estavam ao alcance dos alunos: mecânica de automóveis, eletricidade e tornearia mecânica. Para ser sincero, uma pior do que a outra. Detesto automóveis e morro de medo de eletricidade (até trocar lâmpada me deixa em pânico). Não restou alternativa.
Aborrecimento era o mínimo que as aulas de tornearia me causavam. Uma das tarefas (que deve ter sido elaborada por algum aprendiz de Torquemada) consistia em limar um bloco de metal. O aluno precisava deixá-lo absolutamente retilíneo, não podia passar uma mísera fresta de luz. Esporadicamente, o professor, munido de um instrumento de tortura medieval chamado paquímetro, fazia a aferição. Meu bloco nunca estava de acordo com o esperado. E lá ia a vítima para mais algumas horas de esforço físico, mais um calo na mão e nota baixa.
Outro episódio surreal daquela época: eu fui professor de História da minha própria turma! Em diversos momentos, por problemas particulares, o titular da cadeira precisou se ausentar. Como ele já tinha sido meu professor em outra escola e sabia que eu tinha algum conhecimento sobre o conteúdo, me pediu para substituí-lo. Empolgado, sem pensar nas consequências, aceitei a tarefa. Foi divertido. De qualquer maneira, nunca procurei saber se a direção do colégio tomou conhecimento dessa infração.
Entre os professores, várias figurinhas carimbadas. Em especial, a professora de biologia. Maria Helena, vulgo Samambaia, tratava os alunos como se fossem escravos de galés. Mal aparecia na esquina do corredor e já estava ditando matéria. Era Mefistófeles personificado em alguém que recusava ser simpática. Lembro-me de um raro momento em que perdeu a linha. Como é de lei, a sala tinha um candidato a humorista. O cara não perdia uma oportunidade para fazer alguma gracinha. No meio de alguma explicação, disse o que não devia – ou devia, sei lá! Maria Helena ficou furiosa e falou algo sobre não tolerar criancices e que, se o sujeito não se comportasse, ela compraria uma chupeta para ele. Contrariando as regras da relação professor-aluno, o sujeito fez pouco caso do sermão, e provocou: se ela pagasse, ele mesmo iria comprar a chupeta. Fez-se o silêncio. Parecia rodada decisiva de pôquer, a dúvida instalada: será que um dos jogadores iria desistir ou mergulhariam de cabeça no turbilhão do “all in”? Maria Helena conferiu as suas fichas e resolveu pagar para ver. Pegou o dinheiro na bolsa e entregou para o aluno. Para surpresa geral e desmoralização total da professora, uns dez minutos depois, ele voltou para a sala e passou o resto da aula com a chupeta na boca.
O pouco que sei sobre matemática devo ao Márcio, um sujeito um pouco mais velho que os alunos e que um dia foi dar aulas em Goiás ou Tocantins, um desses lugares misteriosos do sertão brasileiro. Mesmo assim, quando me lembro das noites que passei estudando o livro do Osvaldo Sangiogi, sinto um desânimo insuperável.
Anderson, professor de física, era gremista fanático. Aulas nas manhãs de segunda-feira eram sinônimos do fracasso. Alguém sempre fazia alguma pergunta sobre o jogo de domingo. Ele tentava fugir do assunto. Outro aluno iniciava nova provocação. Alguma coisa transbordava dentro daquele homem educadíssimo, a paixão tomava conta e... o pandemônio se estabelecia. Adeus aula! Muitos anos depois, foi meu vizinho. Certa vez, enquanto esperávamos pelo elevador, relembramos essas pequenas trapaças da sorte.
As melhores aulas (para mim) eram de português e inglês, história e geografia, disciplinas que serviram para me mostrar que existem outros caminhos além da mediocridade. Várias vezes encontrei Dona Vânia Albuquerque no supermercado, mas nunca consegui dizer o quanto estou em dívida com a professora que, constantemente, me incentivou na direção da leitura, com a professora que respondia ao meu destempero com doçura e paciência.
No terceiro ano do colegial resolvi abandonar tudo. Não terminei o ano. Estava no lugar errado. Só fui completar o segundo grau uns cinco anos depois e em outra escola. A mãe ficou furiosa, mas teve sensibilidade para compreender que aumentar a infelicidade costuma causar estragos irrecuperáveis.
Nunca mais voltei ao Industrial, nem sequer para ver os belíssimos mosaicos do Martinho de Haro. Salvo quatro ou cinco ex-colegas, com quem tenho algum tipo de proximidade ou que encontro em lojas e restaurantes, perdi o contato com a turma – alguns moram em outras cidades, outros faleceram. Não sinto a menor falta.
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É como se diz, se você gostou da escola vai adorar trabalhar.
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