Nos últimos anos, várias manifestações artísticas estiveram presentes nas paredes externas da Biblioteca Pública Carlos Dorval de Macedo (Rua Zéca Neves, s/n, Lages, SC). Muitas delas receberam a reprovação de quem possui pouca tolerância para o poder subversivo do grafite. Para agradar os que esbravejaram contra riscos e rabiscos dos bárbaros que sujaram o patrimônio público, comprovando que gosto se discute, os textos e os desenhos foram sendo apagados na medida em que surgiam.
Como reação contra as formas artísticas contemporâneas de ocupação urbana, o poder público estabeleceu uma estratégia de higienização das paredes da Biblioteca. Ou seja, permitiu alguns murais comportados. A última tentativa está em exibição para o distinto público. Basta ir até o Parque Jonas Ramos (Tanque) e admirar as pinturas.
Usando cores que induzem bons sentimentos (energia, tranquilidade, limpeza, etc.), os murais sao a reprodução de uma interpretação histórica simplificada. Dividido em duas partes, o trabalho segue uma proposta estética conservadora. Na parede direita da Biblioteca está retratada a Catedral e Nossa Senhora dos Prazeres, a padroeira do município. Na parede esquerda, o ambiente rural se apresenta em três partes: tropeiro, estrada de ferro e igreja de madeira (que lembra a igreja de Morrinhos, na Coxilha Rica). São registros clássicos da mitologia que emoldura o Planalto Catarinense – e que ratificam um pensamento estratificado e, para alívio geral, agradável ao olhar.
O visual que não causa discussões ou polêmicas indica o impedimento para quaisquer outras formas de produção gráfica naquelas paredes. Quem vai querer danificar um trabalho tão bonito? Nem mesmo um vândalo profissional seria capaz de tamanha heresia.
Essa maneira de pensar, em lugar de promover a pluralidade e a diversidade artística, estabelece uma muralha contra tudo o que não obedecer as regras ditadas pela cartilha do bom gosto. Resta saber o que é bom gosto e quem recebeu o certificado de censor oficial das artes plásticas.
Ao adotar a hagiografia, na medida em que impulsiona o triunfalismo daqueles que ocupam posições centrais nos livros de história, a narrativa descarta a possibilidade de fornecer visibilidade para aqueles que não se destacaram no mundo dos homens de bem. E isso significa que existem pessoas que não querem entender que a história não está envolta em sentimentos edulcorados.
Poucos se lembram que os latifundiários, abastecidos pelos tropeiros que transitavam pelo entreposto comercial (a aldeia em seus primórdios), massacraram índios e negros. Poucos se preocupam com o papel domesticador da igreja católica em favor das elites políticas (da fundação até a atualidade). Poucos são capazes de analisar os crimes ecológicos que resultaram do ciclo da madeira, quando florestas de Araucária angustifolia foram transformadas em dinheiro (que, rapidamente, foi dilapidado, como diziam os antigos, com mulheres ligeiras e cavalos lentos). Consoante com esse tema, não existem estudos significativos sobre as trabalhadoras do sexo nas décadas de 1950 e 1960.
Outras questões importantes para quem quiser entender a formação histórico-cultural da região também foram esquecidas. Em algum momento impreciso, alguém (quem?) decidiu que a cultura do município deveria ser submetida ao poder anestésico da publicidade. Nessa linha, o uso de alguns símbolos (cristalizados pela tradição) constitui uma forma dissimulada de enaltecer esse projeto alienado. Turistas e ingênuos são o público-alvo.
Os murais nas paredes externas da Biblioteca Pública são esteticamente interessantes – mas isso não é o suficiente. A beleza muitas vezes se parece com um nevoeiro – encoberta a paisagem, o horizonte desaparece, e tudo se transforma em outra coisa, muito diferente do real.
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