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terça-feira, 25 de julho de 2023

SAIA DA FRENTE DO MEU SOL

 


Alguns livros não precisam estar amarrados na tradição da linearidade. Transgredir se mostra, em várias ocasiões, interessante – porque quebra os padrões e produz uma linguagem (pele que envolve o texto) que causa o estranhamento, induz à reflexão e, sobretudo, permite o exercício da criatividade.

Transitando entre a biografia ficcionalizada, o ensaio literário e a autoficção, Saia da frente do meu sol se concentra em um tempo familiar em que as relações de afeto tinham um significado diferente daquele que vigora atualmente: Já fomos uma família imensa, dessas que se reúnem toda semana para comer, beber e bater boca. Hoje somos poucos, e não nos damos bem. O tempo muda a percepção das coisas e dos sentimentos. 

Em algum momento de sua vida, Ricardo morou no quartinho dos fundos da irmã mais nova. Quando ela faleceu, ele se desentendeu com o viúvo. Então, reivindicando os vínculos de sangue, se mudou para a casa da outra irmã – mãe de Felipe Charbel. Doente, vivendo com uma aposentadoria insignificante, era um estorvo.   

Vinte anos depois da morte do tio-avô, Felipe, ao encontrar algumas fotografias que estavam dentro de uma caixa de sapatos, reconstrói o percurso do personagem – com quem conviveu durante cinco anos. Ele quer pagar uma dívida com o passado. Mas não sabe o que ficou devendo, nem como isso será possível. Quer desvendar o mistério que todos evitam mencionar. Por isso, escreve.

No entanto, esse reencontro com o passado não se dá como soma de alguns episódios das histórias familiares. Felipe, na tentativa de entender as pegadas do tio, mergulha no chiaroscuro das imagens fotográficas, como se isso fosse suficiente para indicar uma rota de compreensão. Encontra um beco sem saída. Os episódios que imagina estarem por trás das imagens são apenas suposições, formas de preencher os espaços vazios de uma biografia destinada ao esquecimento.

Então, ao perceber que o real está distante (e talvez não possa mais ser alcançado), Felipe, de certa forma, rompe com os limites da tessitura biográfica e usa o livro de Pierre Michon (Vidas minúsculas) como um suporte para o que supõe ser uma alternativa textual. Mais uma impossibilidade. O que produz é um texto fragmentário, descosturado – fios soltos que parecem não ter outro objetivo senão dar conta de que escrever sobre o tio é uma forma de escrever sobre si mesmo. Então, no intervalo entre um palpite e outro sobre a vida que pode ter sido (ou que ele gostaria que tivesse sido), entre os olhares e os comentários que dirige às fotografias, faz menção ao próprio casamento (que não deu certo), discursa sobre a angústia de tentar encontrar um lugar no mundo, lamenta a morte do pai e a briga com a mãe (por questões políticas), comenta um conto inconcluso que escreveu, revê as anotações no diário, lamenta as mesquinharias do cotidiano – um imenso tagarelar. Talvez seja uma forma de dizer (sem dizer) que as palavras são insuficientes para dar conta de tudo o que o aflige – e, por extensão, o que desejaria encontrar na vida do tio morto.

Ao final do livro, Felipe nada conclui – porque não há o que concluir. É como se ouvisse a voz do tio: Que papo torto, Banguense. As pessoas são o que elas são.


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