Alguns livros deveriam incluir uma cinta de advertência aos leitores. Por exemplo: este texto pode causar efeitos desagradáveis em pessoas que possuem... (e se completaria a frase com o medo ou o trauma correspondente). Claro, isso parece ser anticomercial, mas evitaria sustos e abandonos da leitura.
Um exemplo singular dessa proposta encontra-se na ficção científica Herdeiros do tempo, de Adrian Tchaikovski (São Paulo: Morro Branco, 2022). O livro está dividido em dois planos narrativos. O primeiro, do subgênero space opera, relata uma série de acontecimentos que ocorrem dentro de uma nave espacial – que está procurando por um planeta que possa abrigar os últimos sobreviventes da Terra (que foi destruída por alguma catástrofe).
O planeta ideal para os humanos colonizar está descrito no segundo plano narrativo. No entanto, esse novo Éden é habitado... por aranhas, formigas, pulgões e alguns seres aquáticos de pouca relevância (estomatópodes). As aranhas são grandes e, digamos assim, antropomorfizadas. Descontadas pequenas diferenças, o mundo dos aracnídeos pouco difere do mundo terráqueo. As aranhas possuem uma linguagem própria, acumulam conhecimento científico (teia em expansão do progresso), estão sempre em guerra (contra formigas, contra outras aranhas) e acreditam em um deus onipotente, onipresente e onisciente. Nesse mundo, governado pelas fêmeas, os machos são indivíduos de pouca utilidade – serviços braçais, reprodução, submissão.
Enquanto as aranhas devoram outras aranhas, aqueles que estão na órbita do planeta lutam pelo controle da nave espacial (Gilgamesh). Imagem refletida no espelho narrativo, os dois mundos compartilham da febre do poder – sem se importar com qualquer alternativa que não seja o projeto de dominação. Milhares de indivíduos são descartados nas duas situações e isso parece não ter a mínima importância para aqueles que sobrevivem. Aos vencedores, os despojos.
Depois de muitas complicações narrativas, cada um dos lados se prepara para o inevitável. Ou seja, os humanos invadem o território alheio. A construção do novo paraíso exige destruir quaisquer obstáculos que surjam no horizonte, confirmando o enredo de outras narrativas com temas similares – exaltação do colonialismo, do armamentismo, do fascismo e de uma suposta superioridade humana.
Um tema muito comum na ficção científica, a possibilidade de controlar o tempo, também está presente no livro. Os habitantes da nave podem entrar em uma espécie de hibernação e despertar alguns anos (décadas) depois – como se nada tivesse acontecido no intervalo. Embora a imortalidade não seja possível, a velhice pode ser adiada por prazo indefinido. O mesmo não acontece com as aranhas, que precisam transmitir o conhecimento (entendimento) para as gerações seguintes – o que ocasiona algumas perdas, mas também envolve acréscimos.
Nessa narrativa não há final feliz – a derrota atinge a todos. E o que se inicia como uma espécie de construção da esperança para os humanos vai, aos poucos, se transformando em terror. Como sói acontecer nesse tipo de situação tudo se liquefaz em caos.
Por fim, não se deve recomendar a
leitura das 517 páginas de Herdeiros do tempo para aqueles que sofrem de
aracnofobia (medo de aranhas) e/ou mirmecofobia (aversão doentia às formigas). Isso,
provavelmente, evitará sessões intermináveis de terapia e o uso compulsivo de
antidepressivos. No entanto, além do desconforto, a narrativa avança na direção
da transgressão e do estranhamento – e isso deve ser entendido como uma
qualidade, aquela condição que fornece distinção ao texto, afastando-o da vala comum.
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