Danylton, o narrador pouco confiável de Vale o que tá escrito (Editora DBA, 2023), observa o mundo dentro de um café quase falido, na periferia da capital da República. Com a vida pessoal e econômica destroçada, ele aguarda o fim com estoicismo. Certo dia ocorre uma mudança significativa na pasmaceira diária. Ele vê passar pela calçada alguém que pensava estar morto.
O reaparecimento de Juan Pablo Norabuena Urondo, o Lilico, fornece o impulso necessário para que Danylton inicie, pela escrita, um ajuste de contas com o passado. Quer recuperar a história em que ele, no máximo, foi observador relativamente afastado. Isso significa que, para fornecer coerência para o desenho que (em muitos momentos) parece ser ininteligível, precisa fazer muitas perguntas para quem estava próximo dos acontecimentos, consultar arquivos, relembrar episódios, trocar e-mails, reencontrar os amigos. Nessa estrutura fragmentária, que pode ter inúmeras imprecisões, os elementos da trama são oferecidos ao leitor em doses homeopáticas.
Apesar de conter alguns ingredientes de um thriller policial, inclusive porque o jogo do bicho está presente no texto, a narrativa transita com maior ênfase pelas relações familiares, pelos horrores do deslocamento social, pelas pequenas tragédias cotidianas e pela violência urbana – que está enraizada em terreno profundo e fértil. Tudo isso está emoldurado no período da ditadura militar, onde as regras jurídicas são utilizadas para favorecer aqueles que estão em conluio com os que detém o poder.
Descendente de indígenas andinos, Lilico parece ter um imã para as encrencas. Como não nasceu sob o signo da submissão, reage toda vez que encontra obstáculos. E faz isso sem medir as consequências. De certa forma, flerta com o suicídio. Não é exatamente essa a opinião de Cleyton, o seu melhor amigo: Lilico é gente boa, mas sente muita raiva.
Essa raiva diminui quando Lilico começa a namorar Juliane. As aparências enganam. O pai da namorada, um bombeiro que faz “extras” para o jogo do bicho, começa a perseguir o rapaz. Ele conta com a ajuda de policiais corruptos e força o alistamento de Juan Pablo no exército. Essa série de torturas lentas procura transformar a vida de Lilico no inferno em vida. Como não se trata de uma preocupação paterna com a segurança da filha, o motivo desse proceder somente é revelado na parte final da narrativa.
Violência gera violência e, em determinado momento, algumas coisas saem do controle. A selvageria avança em progressão geométrica – sequestros, espancamentos, assassinatos. Lilico desaparece. Juliana e a mãe desaparecem. Algumas pessoas são presas. A vida volta ao “normal” – ou ao que os ingênuos consideram como normal.
Danylton, na medida do possível, fornece uma visão geral dos acontecimentos – embora não consiga preencher alguns “buracos” do enredo. São acontecimentos que não estão ao alcance do narrador. E ele não se esforça para superar essas faltas, prefere terminar a narrativa sem se preocupar com aqueles leitores que não gostam de elaborar teses sobre os acontecimentos textuais que estão faltando. Há quem imagine que uma das tarefas do escritor é fornecer todas – todas! – as informações, resolver as inúmeras questões que surgem no desenvolvimento do texto e entregar um final sem dúvidas ou questionamentos. Felizmente, essa ideia não é consensual.
Vale
o que tá escrito não tem a mínima relação com a série televisiva. São histórias
diferentes, embora tenham o jogo do bicho como um dos eixos narrativos.
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