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terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

LENDAS E CAUSOS DE LAGES

 


A ficção sempre fez parte da vida dos moradores de Lages. É um mundo onde não há limites para a imaginação. Reunir uma serie de histórias e compor um fabulário não parece tarefa difícil, principalmente se o contador das histórias souber misturar o fantástico e o onírico com algum ingrediente humano (uma morte violenta, um amor interrompido, uma briga entre vizinhos, por exemplo). 

Nos Morrinhos, coração da Coxilha Rica, havia, na década de 1960, um olho d’água, uma nascente subterrânea, e que aflorava em um poço construído com pedras. Como ficava distante da casa grande, as crianças eram proibidas de brincar nas proximidades. Diziam que uma alma penada (que não tinha conseguido entrar no céu) vivia naquele local e costumava assustar quem se aproximasse do poço atirando pedras manchadas de sangue. Ninguém duvidava disso.

João Maria de Agostinho, conhecido como São João Maria, curandeiro e líder messiânico da Guerra do Contestado (1912-1916), quando visitou os arredores de Lages, ergueu uma cruz de madeira no topo de uma pequena colina, perto de uma cacimba. O imaginário coletivo logo concluiu que a cruz tinha poderes milagrosos. Fez-se ali lugar de peregrinação, promessas e rezas intermináveis. Algum tempo depois, construíram uma igreja. Pedaços da cruz estão preservados dentro da igreja.

Idêntica circunstância envolve a gruta de São Bom Jesus (Sambão Jesus, como dizia Edézio Nery Caon), que foi, em outros tempos, local de devoção dos católicos. No dia do santo (06/08) eram realizadas missa, churrascada, quermesse. Uma legião de devotos do santo se formou.   

No Parque Jonas Ramos (Tanque), local onde as esposas dos primeiros habitantes da cidade lavavam as roupas, dizem que Antônio Correa Pinto de Macedo (o fundador da cidade, em 1776) afogou a filha (que estava grávida de um bugre – índio Xokleng). Não importa que os livros de história desmintam esse fato e reafirmem que o sujeito nunca teve filhos, o que vale é a lenda e a lenda diz que a moça (ou a criança que estava para nascer) se transformou em uma serpente gigantesca – que, furiosa, queria destruir tudo o que estivesse ao seu alcance. Nossa Senhora dos Prazeres, a padroeira da vila, resolveu impedir a hecatombe que se anunciava e prendeu a cabeça da cobra embaixo de um de seus pés. Conta o povo que, no dia que a estátua da santa (que está na catedral, próxima do altar) for removida, a cobra estará livre e a cidade será arrasada. Como prova e ameaça, o rio Cahará serpenteia o centro da cidade.

Esse vaticínio apocalíptico leva à famosa declaração de São João Maria: quando as ruas de Lages se cobrirem de negro e a Catedral apresentar rachaduras no meio, estará próximo o fim da cidade, pois anoitecerá e não amanhecerá. Tudo será tragado e submergido nas entranhas da terra. Os mais velhos jamais questionaram essa profecia. Basta perceber que a cidade está quase toda asfaltada e que está localizada acima do aquífero Guarani, talvez a maior reserva de água potável do mundo. Será que, em algum momento, a reprisar alguma metáfora bíblica, a terra vai se abrir e engolir a cidade?

A ideologia bélica dos habitantes do Planalto Catarinense costuma glorificar um grupo de cavalaria que combateu na Guerra dos Farrapos (1835-1845), ao lado das tropas de Bento Gonçalves e Davi Canabarro. Nessa epopeia não faltam passagens heroicas, batalhas épicas e o famoso encontro amoroso e sexual entre Ana Maria de Jesus Ribeiro da Silva (também conhecida como Aninha do Bentão) e Giuseppe Garibaldi. O mistério que intriga os historiadores (e os escritores) está em descobrir se Anita Garibaldi nasceu no interior do município de Lages ou em Laguna, onde residia com o marido (que era sapateiro).

Márcio Camargo Costa, provavelmente o escritor que melhor compreendeu as tradições ficcionais da região, recuperou a história da Caudilha de Lages (Aninha Athanasio), senhora e dona do Raposo e do Cajuru. Com o chicote em uma das mãos e o nagant garrão-de porco na outra, ela fez os homens se curvarem ao seu poder. Era uma feminista avant la lettre

Uma das histórias mais horríveis da região também foi contada por Márcio Camargo Costa. Foi no tempo da escravidão. A esposa de um fazendeiro recebeu alguns amigos. Uma das escravas (que era muito bonita) sorriu para um dos visitantes e foi correspondida. A fazendeira, cheia de rancor, considerou a cena um desrespeito. Então, mandou quebrar todos os dentes da escrava. Em seguida, ordenou que fosse pendurada pelas orelhas no pelourinho – a moça lá ficou, os pregos se misturando com o sangue, a dor sendo traduzida em gritos e desejo de morrer.

No folclore regional, há outras narrativas, mais leves, menos amargas, e que envolvem maridos traídos, aventuras na “zona”, corridas de cavalos, golpistas, episódios de tolice política, bêbados, muitos bêbados. Há diversão para todos os gostos. Para quem gosta de histórias baseadas na vida real, os inúmeros episódios protagonizados por figuras pitorescas como Beto Louco, Nereu Goss, Rogério Castro, Clênio Souza, Luiz Alfredo Ribeiro, Morô, Al Neto e outros tantos não devem ser esquecidos. São peripécias que ainda estão para ser contadas em detalhes. Cada um desses personagens vale um livro!

Olhando para o passado, pensando no poder do imaginário e em quem gosta de ouvir uma boa história, cabe perceber que as narrativas que são recordadas com maior nitidez foram contadas em volta do fogão de lenha, em noites de inverno. As sombras projetadas nas paredes pelas labaredas e pelo lampião de querosene sempre foram mais eficazes do que os cenários teatrais. E esses relatos, que cobrem um vasto leque de emoções, transitam entre assombrações, golpes do destino, desilusões amorosas e aventuras épicas. 

Há quem diga que aquilo que não aconteceu precisa ser inventado.


Um comentário:

  1. Brilhante texto Raul, como sempre. Ficarei esperando as histórias da vida real escritas por você destas figuras pitorescas tão bem lembradas! Abraço

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