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segunda-feira, 4 de março de 2024

FIM DE TARDE EM UM DOMINGO QUALQUER

 


Exercendo o hábito de postergar tudo o que está ao seu alcance, ele deixou a visita ao supermercado para o final da tarde. No momento em que – finalmente – decidir ir, estava garoando. Mas, como se fosse um farol a iluminar o desatino, havia uma réstia de sol no horizonte. 

Embora a sua famosa expertise meteorológica não mereça confiança, calculou que dava para ir e voltar antes da chuva se tornar mais forte. Por isso, armado de coragem e determinação, deixou o guarda-chuva em casa. Isso não faria diferença ao final das contas – mas, naquele momento, não era possível prever o futuro. E ele precisava de pão, iogurte e aquelas bobagens que, se não modificam a vida, acrescentam um pouco de açúcar nas agruras do existir.

Foi. E não se incomodou com os esparsos pingos d’água que o céu derramava sobre o corpo. Fez as compras, acrescentando algumas coisas que não estavam na lista (e que lembrou estar em falta), pagou e, carregando as sacolas, voltou à avenida. Depois de ter caminhado umas duas quadras, foi atingido pelo aguaceiro. Em tempos de calor vulcânico, uma chuvinha de verão é sempre bem-vinda – disse para si mesmo.

Em uma avenida de poucas marquises, esse tipo de atitude não pode ser considerada uma prova de inteligência. A tempestade se intensificou – quase um dilúvio. Como era impossível ver um palmo diante do nariz, guardou os óculos em um dos bolsos da bermuda. Os chinelos e a camiseta estavam ensopados.  

Poderia ter se abrigado no ponto de ônibus ou no posto de gasolina. Poderia. Molhado da cabeça aos pés, preferiu continuar a jornada. Faltava pouco. Muito pouco. Por isso, abstraiu a umidade e se concentrou nos compromissos do dia seguinte. Repassou o pagamento do aluguel, a compra do bilhete de loteria, a visita ao barbeiro. Coisas miúdas da segunda-feira. 

Esse momento de afastamento da realidade não serviu como escudo contra a tempestade, que tinha aumentado. O vento também se fez presente – e certamente teria destruído o guarda-chuva que ele deixou em casa.     

Fazer o quê? Mais uns 200 metros e as compras seriam salvas. Raios riscavam o horizonte, trovões assustavam quem estava na rua. A nostalgia o pegou pelo braço e o fez voltar no tempo. Lembrou dos seus barquinhos de papel protagonizando aventuras por oceanos distantes. Naqueles momentos, pouco se importava com a briga – quando chegava em casa molhado como um pinto.

Junto com essas recordações de um passado que estava perdido, vieram outras, os irmãos correndo pela casa, as manhãs e as tardes na escola, as vozes da mãe e da avó repetindo ditados populares (não adianta chorar pelo leite derramado, cada um sabe onde lhe aperta o sapato). All those moments will be lost in time, like tears in rain...

Na porta do prédio, respirou demoradamente, o ar entrando nos pulmões como se fosse a brisa da primavera. Enfrentou as escadas, abriu a porta do apartamento, guardou as compras, tomou banho, e, como compete aos que cultivam desastres como se fossem flores, sentiu o quanto é bom estar vivo.    


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