Os homens, incidentemente, se dividem também em duas categorias: os que são e os que não são de canivete.
(Fernando Sabino)
No final dos anos 80 do século XX, comprei um Victorinox. Perdi o canivete algum tempo depois. O meu nome estava gravado no dorso vermelho. Em diversas oportunidades quase comprei outro. Em algumas lojas de importados (Florianópolis e Joinville) pedi para ver aqueles que estavam expostos nas vitrines. Durante alguns minutos manipulei réplicas do desaparecido. Perguntei pelo preço. Não era caro, nem barato – cabia no meu orçamento. No entanto, lutando contra todas as forças do universo, resisti. Preferi continuar sem canivete.
Aconteceu assim. Fui a São Paulo no início do século. O canivete estava unido ao molho de chaves. No aeroporto, em Florianópolis, nenhum problema. Na volta, a Polícia Federal imaginou a prática de alguma ação terrorista. Os protocolos de segurança depois de 11 de setembro de 2001 ficaram mais paranoicos. O voo estava quase saindo, não tive tempo para encontrar alguma alternativa. Vão-se os anéis, ficam os dedos.
Para ser bem sincero, o canivete não era muito utilizado. Nunca o usei para descascar laranjas. Como não sou da turma do cigarro de palha, também não piquei fumo-de-corda. Aliás, nem fumante sou. Apontar lápis é outra atividade que não executei. Escrevo a caneta ou no computador. Então, para que precisava do canivete?
Para lembrar. Era a recordação física de um período que considero importante na minha vida. Sim, algumas marcas ficam gravadas na pele da gente. Ver o aço da lâmina brilhando tinha como significado principal impedir que o passado fosse tratado como algo descartável ou substituível. Com o poder simbólico que atribuímos às relíquias, sentir o peso do objeto nas mãos ou no bolso equivalia a um ritual de celebração da memória.
A ausência, mais do que assumir a forma de luto, amplia a frustração. É a potência da descontinuidade, o império da interrupção. De repente, sem que fosse permitido escolher em manter ou apagar o registro de algo que se destacou, o canivete servia de ponte entre o presente e o passado que deixou de existir.
Provavelmente, em algum momento impreciso, será como se o canivete nunca tivesse existido. A névoa do esquecimento encobrirá o percurso. E todas as coisas que a ele estão relacionadas também desaparecerão na bruma.
Antes cair das
nuvens, que do terceiro andar,
observou o cínico Machado de Assis, fingindo não compreender a intensidade de
alguns sentimentos. Renato Russo foi mais cruel: (...) a gente chegou
um dia a acreditar / Que tudo era pra sempre / Sem saber / Que o pra sempre /
Sempre acaba!
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