Algumas leituras são dolorosas. Momentos em que o leitor precisa fechar o livro durante alguns instantes, tomar fôlego, reler o trecho perturbador, repensar algumas coisas e perceber que existe um entrecruzamento entre o que está sendo narrado e o que viveu (ou que poderia ter vivido). É o caso de Quem matou meu pai, de Édouard Louis (Editora Todavia, 2023).
Retomando um tema muito presente na modernidade, as relações entre filho e pai, Édouard Louis se afasta da possibilidade simbólica de reconstruir o parricídio (que tinha ocorrido em outra oportunidade) e se concentra em criticar os programas políticos que promovem a extinção dos mecanismos governamentais de assistência social. E cita, nominalmente, os responsáveis por essas ações: Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy, François Holland, Emmanuel Macron, Manuel Valls, Xavier Bertrand, Martin Hirsch, Myriam El Khomri, entre outros.
São essas figuras públicas que promoveram, ano após ano, governo após governo, a precarização da vida dos aposentados. Cada euro confiscado resulta em dificuldades para comprar remédios, alimentos, pagar aluguel, sobreviver. São essas figuras públicas que contribuíram para que a sociedade francesa seja dividida basicamente entre pobres e ricos – ampliando a desigualdade econômica e social. Nessas condições, somente os ingênuos acreditam que o corte de benefícios pode resultar em tranquilidade. Por isso, não existe surpresa quando surgem inúmeras greves, constantes depredações do patrimônio público, embates com a polícia. No contra-ataque, as forças de repressão usam as pautas legítimas dos trabalhadores para estabelecer que estão a serviço dos patrões.
O pai de Édouard sofreu um acidente de trabalho e ficou incapacitado para retornar ao emprego. Além das dores físicas e da estigmatização social por ser um inativo, precisou conviver com o salário cada vez mais escasso e sem a assistência médica necessária. É uma vida miserável. E que – muito antes – tinha se agravado com o alcoolismo, a separação da esposa e os consequentes problemas domésticos. A estrutura familiar não sobreviveu aos momentos de ruptura afetiva e econômica.
Por vias transversas, em uma espécie de ato de contrição (que reúne o arrependimento filial e a restauração da paternidade), o relato de Édouard Louis tenta reparar o esgarçamento familiar. Ele sabe que não existe conserto para o que o passado estragou – no entanto, por pior que sejam as condições, sempre existe a possibilidade de estender a mão e ajudar aquele que está debilitado.
Um outro fator que interfere na organização textual se mostra claro na diferença que existe entre o filho intelectual (com posições políticas especificas) e o pai semianalfabeto (apático por qualquer causa social). Quando o pai deixa de se envolver com as questões fundamentais, ele autoriza que o opressor atravesse as fronteiras do bom senso. Mais do que isso, compactua com a adoção das medidas previdenciárias que, a curto prazo, vão debitar a sua própria existência. É um processo de autofagia.
Sintético
e contundente, Quem matou meu pai tem a potência de um cruzado no queixo do
neoliberalismo. Se não produz o nocaute, ao menos deixa o adversário atordoado.
E avisa, caso alguém queira alegar desconhecimento, que a luta não está
resolvida em favor daqueles que detém os meios de produção.
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