A morte violenta de Soeli Volcato, 13 anos, em uma localidade no interior do oeste catarinense, no dia vinte e um de agosto de mil novecentos e oitenta e um, é o ponto de partida do romance Um crime bárbaro (Autêntica Contemporânea, 2022).
Ao contar (de uma maneira muito particular) essa história, a narradora (em primeira pessoa) percebe que muitas lembranças não podem ser soterradas (alguns gatilhos remetem ao passado). Também descobre que o tempo não gosta de fornecer respostas às perguntas incômodas.
Ciente do quanto é difícil preencher o hiato que separa a tragédia e o momento da escrita, a narradora se desloca várias vezes do Rio de Janeiro até o local do homicídio. Quer encontrar algum tipo de explicação. Quer descobrir o que motivou a tragédia. Mesmo assim, depois de quarenta anos, é improvável que surja algo próximo da verdade (se é que isso algum dia foi possível).
No entanto, nesse tipo de investigação, urge ser persistente. Então, ela conversa com algumas pessoas (correndo o risco de que a memória distante distorça os fatos), estabelece a cronologia dos acontecimentos, imagina o que algumas pessoas fizeram naquele dia e, por fim, relaciona os prováveis responsáveis pelo crime e os motivos.
Infelizmente, nada se mostra sólido. Na estrutura do texto, a ficção possui maior relevância do que a realidade – talvez seja por isso que o texto está carregado de suposições. Nem mesmo a última parte da narrativa é capaz de fornecer uma explicação razoável. O homem entrevistado está doente (um câncer terminal) e morre antes de confirmar ou desmentir a acusação de que foi um dos responsáveis pelo assassinato.
Uma das qualidades de Um crime bárbaro está em mostrar um pouco de sociologia da literatura. Isto é, há descrições da mentalidade predominante nas pessoas que moram (moraram) nas áreas interioranas de Santa Catarina. Principalmente, a xenofobia (repulsa aos que não pertencem ao grupo estratificado) e a glorificação do trabalho como recompensa por uma vida sem perspectiva. Então, nos momentos de lazer (churrascos, festa de igreja ou da escola), surgem as desavenças entre vizinhos e as bebedeiras – compensação pelas horas de serviço braçal nas plantações, na lida com os animais (vacas, porcos, cavalos). Nessas ocasiões, as palavras expressam o que, no dia a dia, está interditado. Se as ameaças vão se concretizar, ninguém garante – mas, o sossego deixa de existir e o medo se torna constante.
Nesse mundo, as dificuldades da vida social se multiplicam. Algumas moradias são precárias, a evasão escolar não incomoda (sequer é percebida), faltam hospitais, os bens de consumo não estão acessíveis, a repressão policial conta com o apoio popular. O recorte da vida rural (e que não está restrito aos anos 80) revela uma estrutura que poucos desejam modificar – inclusive porque pode alterar os mecanismos de poder (principalmente na base eleitoral conservadora).
O
romance de Ieda Magri, mais do que uma tentativa de esclarecer um episódio que
provavelmente estava fadado a permanecer nas sombras da história, propõe um contraste
entre a civilização e a barbárie. O final aberto, onde a incerteza se apresenta,
revela que o horror está em vantagem.
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