A
biblioteca é um lugar onde o conhecimento e o horror se espelham. Além de ser o
ambiente propício para o estudo, pode ser portal para o universo (O Aleph,
Jorge Luis Borges), espaço adequado para mostrar o quanto o poder é risível (Um
General na Biblioteca, Ítalo Calvino), cenário para crimes (Um Corpo na
Biblioteca, Agatha Christie), incêndios (O Nome da Rosa, Umberto
Eco, Auto de Fé, Elias Canetti, e Fahrenheit 451, Ray Bradbury),
além de constituírem um território farto para o exercício da censura política.
Tudo pode acontecer enquanto o silencio é cumplice de quem passa parte de seu
tempo enclausurado em uma sala repleta de livros.
Não
é exatamente o caso dos personagens de Aqueles Cães Malditos de Arquelau,
de Isaias Pessotti (São Paulo: Editora 34, 1993), embora todos trabalhem no Istituto
Galileo Galilei per la Storia della Conoscenza, próximo de Milão. Em outras
palavras, parte da narrativa está conectada com um tipo específico de
bibliofilia: missais, antifonários, herbários, bestiários, bíblias,
pergaminhos, códices, cartas geográficas, incunábulos, manuscritos, etc. Quanto
mais antigo for o livro, melhor. E o valor do volume aumenta se tiver escólios
(anotações, comentários). Por isso, parte da ocupação profissional daqueles que
trabalham no Galilei consiste em vasculhar conventos, igrejas, porões e cofres
de sacristias, batistérios ou cenáculos, bibliotecas, sótãos, armários, oficinas
de restauração. Nas palavras de Emílio Donatelli, o narrador do romance: Descobrir
esses esconderijos era uma espécie de hobby nosso nos finais de semana, quando
saíamos, quase sempre no Citroen 2HP de Bruno Salvadori, atrás de boa comida,
bons vinhos e velhos escritos”
Em
uma viagem ao interior do Piemonte, próximo de Madonna della Spina, cinco dos
integrantes do Galilei (Emílio, Bruno, Lorenzo, Isabella e Beatrice) encontram em
uma Villa afastada uma igreja em ruínas – construída (possivelmente) no
século XV pelo Bispo Lutércio, religioso que era chamado pelo povo da região de
Bispo Vermelho. Completando o evento, eles descobrem alguns livros raros,
inclusive um Commentarium sobre o teatro grego.
Como
acontece nessas situações em que o desafio intelectual surge como um estímulo
para que a pesquisa sobre o passado distante elabore algum tipo de aproximação,
o Instituto Galilei é tomado por um furor intelectual. Diversas hipóteses –
algumas fantasiosas, outras mais elaboradas – são alvo de exame detalhado. No
meio desse nevoeiro espesso, em que a cultura do período medieval está muito
distante do presente narrativo, sobressai o exagero descritivo do narrador – Emílio
é um detalhista e a tudo quer nomear, como se isso reduzisse as distâncias
entre o olhar e o objeto.
Emílio,
latinista, trabalha na transcrição do Commentarium. Entre os diversos
trechos do livro sobressai a rivalidade entre Eurípedes (480 a. C. – 406 a. C.)
e Aristófanes (446 a. C. – 386 a. C.) – uma das abordagens que o texto enuncia,
colocando em relevo os interesses do escritor. Mas, além disso, existem outras
questões. A mais inquietante está na suposição de que as primeiras traduções
dos dramaturgos gregos para o latim foram feitas pelo autor do Commentarium (que
talvez seja o Bispo Lutércio). Como ao interprete cabe saber distinguir as
diferenças entre a verdade textual e a verdade factual, Emílio assinala: Mas
quando se trata de descobrir e entender figuras do passado, pessoas, uma certa
dose de paixão ilumina detalhes que a mera racionalidade não enxerga”.
Evidentemente, isso serve de baliza para não insistir no engano causado pelas
certezas provisórias ou por se apaixonar por personagens que se parecem com
imagens idealizadas. Aqueles que viveram no período medieval enfrentaram
situações diferentes daquelas que vivencia o tradutor – e isso nem sempre é
percebido. Por exemplo, os Domini canes (...) estavam
prontos a denunciar por heresia quem, através dos textos clássicos, contribuía
para a criação de um “novo paganismo” Qualquer referência ao teatro
grego, pagão, provavelmente atrairia a atenção da Inquisição (cães do Senhor),
originando consequências desagradáveis.
O
conhecimento deve ter uma dimensão erótica,
escreve Emílio em um parágrafo que deveria passar desapercebido. Ao trabalhar
com a transcrição do Commentarium, ele finge não ter disposição para
causar algum tipo de atrito. Como todo tradutor/traidor, ele sabe que qualquer
relação com o texto implica em contato com outra pele, com a fricção entre os
corpos, com o propósito último que é o de obter o gozo. Mas também sabe que
existe a possibilidade de Eros ser superado por Thanatos – o que talvez amplie
a volúpia.
Nesse
poço que ninguém conhece a profundidade, incontáveis páginas da tradução do Commentarium
revelam uma discussão interminável sobre as obras de Eurípedes. Essa tarefa corre
paralela ao desejo carnal de Emílio por Anna (pesquisadora do teatro grego
clássico). Nesse momento, em que o desejo adquire dimensões de diferentes
intensidades, a metáfora que une a vida ao teatro parece relampejar entre as
páginas de Aqueles Cães Malditos de Arquelau. Embora Emílio e Anna
consigam superar as barreiras e conjugar os verbos do prazer de forma
substancial, o texto suscita mais perguntas do que respostas.
A
importância da igreja católica apostólica romana adquire destaque no texto que
está sendo traduzido. Isso significa que o andamento narrativo sofre
transformações – a cultura literária grega é substituída pela desconfortável influência
da Inquisição.
A
descoberta de que Lutércio é uma contração do nome de Ludovico III (LV
Tertius/Ludovico Terzo) de Monferrato, um cardeal que caiu em desgraça em
uma das muitas intrigas na sucessão papal, muda em muito o entendimento dos
pesquisadores. Os livros que sobreviveram a essa época se tornam testemunhas de
um projeto repressivo e que confirma que todos aqueles que, por algum motivo,
se desviaram do ordenamento religioso ou da estrutura política (que em muitos
casos é a mesma coisa) foram, de uma forma ou de outra, considerados como
inimigos. Ludovico III prefere se retirar desse cenário viciado e se refugia em
uma vila no interior do Piemonte, constrói a capela, o teatro, e passa a viver
isolado da maldade humana. Pelo menos, é essa uma das possíveis hipóteses a que
chegam os pesquisadores ao examinarem os documentos que vão sendo reunidos na
medida em que a pesquisa avança.
O
que era para ser procura por livros raros evolui para um enigma sobre a
história (italiana e da igreja católica). Na medida em que novos elementos se
somam nesse emaranhado de fatos, o desenho que está inscrito nessa tapeçaria,
nessa tessitura, que constitui o espaço literário, adquire visibilidade –
embora algumas questões continuem embaçadas.
No
último parágrafo do Commentarium, Emílio encontra um aviso sobre o
destino daqueles que ousam desafiar a ordenamento social: Quando um homem
superior ao seu tempo (tempori praestans), após tanta
incompreensão e falsidade, insultado em seu nome e escarnecido em seu amor pela
verdade e a justiça, cansado de amarguras renunciou ao convívio de seu povo, às
causas que amara, para escapar do sofrimento no refúgio último de seus sonhos e
afetos, não tinha ainda concluído seu destino infortunado. Ainda o esperavam,
para dilacerar seus sonhos e seu corpo, aqueles cães malditos de Arquelau”.
Ou seja, no desfecho do drama descobre-se que Ludovico III e sua amante foram dilacerados
pelos cães do marido de Victória (que, por uso de figura de linguagem, é
identificado como o governante da Judéia, da Samaria e da Idumeia no período em
que nasceu Jesus Cristo).
Aqueles
Cães Malditos de Arquelau pode ser definido como um romance
erudito. A prosa pesada, repleta de citações em latim e grego, além de dados
sobre um passado remoto e que é reconstruído ficcionalmente, exige do leitor
paciência e, em alguns momentos, boas fontes de consulta – se o leitor quiser
separar a ficção dos fatos históricos. Para amenizar um pouco essa lentidão e
excesso cultural, surgem algumas notas de humor nos diálogos entre os
personagens, uma espécie de esgrimir entre a inteligência e os elementos de prazer
que constituem a leitura.
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Isaias Pessotti (1933-2024) |