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sábado, 25 de outubro de 2025

NÃO COMPRO LIVROS NA AMAZON

 


Não compro livros na Amazon. Nas diversas vezes que tornei pública essa afirmação, não foram poucos os olhares de incredulidade e – simultaneamente – de curiosidade. Afinal, sou um bibliófilo – ou seja, alguém que ama os livros e os compra com frequência. Em seguida, me perguntam: qual é a alternativa? Usando da (pouca) paciência (que tenho), tento explicar a necessidade de apoiar as pequenas livrarias, os sebos e a economia local. Raramente consigo ter êxito nessa argumentação. Os preços e as vantagens adicionais oferecidos pelas grandes empresas (descontos, tempo de entrega, estoque, etc.) tornam qualquer discussão inútil. O imediato é mais valioso do que os benefícios obtidos a longo prazo. É o espírito do tempo, diria um cínico.

Fui criado em uma cidade que teve, durante determinado período histórico, quatro livrarias. Eu era freguês de todas. Duas eram bastante deficitárias (Nobel e La Fontaine). As outras (A Sua Livraria e Livraria Serrana) tinha as características que fazem das livrarias de rua uma expedição ao paraíso. Eram gerenciadas pelos donos, pessoas que conheciam os gostos dos clientes, aceitavam encomendas e, em casos especiais, faziam fiado. Também existia um sebo: Saber e Ler. O tempo passou, o vento mudou de direção, o ambiente ficou árido e as escolhas desapareceram. Simultaneamente, de forma mais abrangente, os suplementos culturais dos jornais (e as revistas especializadas) deixaram de ser publicados. As informações sobre os temas relacionados com a biblioteconomia (que era pouca e para poucos) ficaram voláteis e a Internet se transformou no grande oráculo – fornecendo respostas para enigmas inexpressivos.

O progresso tecnológico está contribuindo para modificar as conexões afetivas. Uma das consequências imediatas desse fenômeno pode ser constatada quando percebemos que o contato intimo com os livros está adquirindo outro significado. Além de ter perdido a aura (ver Walter Benjamin), o livro deixou de ser uma fonte de conhecimento ou de entretenimento e passou a ser considerado um produto comercial – muitas vezes, descartável. O marketing (seja através dos influencers, seja de forma mais ortodoxa) passou a determinar a ordem de prioridade nas relações de consumo.

Um dos gargalos da modernidade pode ser constatado no momento em que a cultura se confunde com a economia. De forma correlata, existe um processo imobiliário (similar à gentrificação) para a extinção das livrarias de rua (ou o deslocamento desses estabelecimentos comerciais para as grandes redomas da contemporaneidade: os shoppings).

Nesse cenário de devastação, a Amazon surge como se fosse uma tábua de salvação. Muitos leitores ficam encantados com a possibilidade de ter uma grande livraria ao alcance do laptop ou do celular. As compras virtuais passam a ditar a regra geral do comércio. Mas, esse tipo de pensamento ritualiza o erro. A empresa de Jeff Bezos (assim como outras empresas de comércio virtual) ambiciona – seja de uma forma ou de outra – dominar o mercado. E, em uma etapa posterior, aumentar os preços dos produtos que estão à venda. A proposição básica que orienta esse empreendimento pode ser sintetizada em uma única palavra: lucro.

Então, quais são as possibilidades em um mundo em que a tecnologia (aliada com os conglomerados comerciais) tomou conta dos laços sociais? Não existe uma resposta satisfatória para o impasse. Mas há escolhas menos danosas. E a principal é fazer o dinheiro circular entre os pequenos comerciantes (sejam físicos ou virtuais). Isso contribui para impedir o desemprego, combate a uberização dos serviços de entrega (um dos motivos da desestabilização dos Correios) e vitaliza as relações entre fornecedores e consumidores. 

A razão econômica é a razão do proprietário – nunca é a do cliente.     


terça-feira, 21 de outubro de 2025

SEDA

 


Alguns leitores influenciam outros leitores. Não é frequente, não é raro. Todo comentário ou resenha desperta curiosidade. Ocasionalmente, alguém menciona um livro que não está mais na moda, que perdeu os quinze minutos de fama, que está destinado aos saldos das livrarias ou às estantes dos sebos. Mesmo assim... Mesmo assim, são narrativas que sobrevivem aos interesses descartáveis do capitalismo (que estimula o consumo das novidades e nega qualquer discussão sobre a qualidade). 

Um desses casos é Seda, de Alessandro Baricco (Editora Companhia das Letras, 2007. Tradução de Léo Schlafman). Diversas páginas virtuais de literatura em Espanha, Portugal e Itália não medem esforços para o recomendar constantemente. E fazem isso com tamanha paixão que o contágio se estabelece com facilidade.

A narrativa está concentrada na história de Hervé Joncour (que mora em Lavilledieu, no sul de França). Ele compra e vende bichos-da-seda (ou melhor, os ovos do inseto). No início, viajava para o Egito e a Síria. Em 1860, uma epidemia de pebrina (doença infecciosa) tornou inviável nessas regiões a criação do animal (como tinha ocorrido antes na Europa). A indústria têxtil então se volta para o Japão – que fica do outro lado do mundo.  

Hervé Joncour precisa atravessar a Europa e a Ásia, em um percurso que dura cerca de seis meses. Pouco se sabe dos perigos que enfrentou nessa aventura (que se repete nas outras viagens). O marco decisivo para que a empreitada adquira sucesso está relacionado com o encontro com uma espécie de senhor feudal japonês: Hara Kei. É ele quem passa a fornecer a matéria-prima, é ele quem acolhe Hervé com um sentimento próximo da amizade – mas que vai se dissolvendo na medida em que Hervé fica fascinado (platonicamente) por uma das companheiras do japonês: Hara Kei estava sentado no chão, com as pernas cruzadas, no canto mais afastado do cômodo. Vestia uma túnica escura, não portava joias. Único sinal visível de seu poder, uma mulher estendida ao lado dele, imóvel, a cabeça apoiada no seu colo, olhos fechados, braços escondidos sob o amplo vestido vermelho que se alargava ao redor, como uma chama, sobre uma esteira cinzenta. Ele passava lentamente uma das mãos nos cabelos dela: parecia acariciar o pelo de um animal precioso, e adormecido.

A mulher se torna objeto do desejo e obsessão – inclusive porque inacessível. A frustração se concretiza toda vez que Hervé volta ao Japão – e a distância entre os corpos vai sendo construída como uma muralha cada vez mais inexpugnável (mas a atração nunca cessa).    

O choque cultural está presente em cada linha dessa narrativa fragmentária (65 capítulos curtos, no máximo duas páginas cada um), sendo que o narrador pouco se detém em detalhar a linha cronológica, preferindo se orientar na construção de imagens que mostram as incontornáveis distâncias entre o Ocidente e o Oriente.

Entre a poesia (expressa na linguagem seca, distante do sentimentalismo) e a prosa de um narrador em terceira pessoa que controla o fluxo narrativo com exatidão, o leitor encontra – na cena final – um Hervé que observa o inexplicável e suave espetáculo que fora a sua vida.    

 

TRECHO ESCOLHIDO

E viu uma árvore, à beira da estrada. E enforcado num galho, o rapazinho que o levara até lá.

Hervé Joncour se aproximou e por algum tempo ficou olhando para ele, como hipnotizado. Então desamarrou a corda, recolheu o corpo do rapazinho, pousou-o no chão e ajoelhou a seu lado. Não conseguia desviar os olhos daquele rosto. Por isso não viu a caravana se pôr a caminho, só ouviu, longínquo, o rumor da procissão que passava por ele, retomando a estrada. Não ergueu o olhar nem mesmo quando ouviu a voz de Hara Kei, a um passo dele, dizendo

– O Japão é um país antigo, sabe? Sua lei é antiga: diz que são doze os crimes pelos quais é lícito condenar um homem à morte. E um deles é levar mensagem de amor da própria patroa.

Hervé Joncour não despregou os olhos do rapazinho assassinado.

– Não tinha mensagem de amor com ele.

– Ele era a mensagem de amor.     


Alessandro Baricco

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

NÓS, OS LEITORES DE POESIA

 

Mary Stevenson Cassatt (1843-1926). Mrs. Duffee seated on a striped sofa,
reading.
Oil on panel, 1876. Museum of Fine Arts, Boston, Massachusetts. 


Dizem que os livros de poesia não são produtos com grande fluxo de venda. Por isso, e por outras razões, costumam ficar esquecidos nas estantes das livrarias – onde, eventualmente, serão adquiridos pelo mais assustador dos fantasmas literários: o leitor de poemas.

Livros são, antes de tudo, mercadorias. E, nessa prosa descolorida, mas que projeta render loas ao capitalismo, ninguém oferece rima ou solução. São as regras do jogo e só os loucos rasgam dinheiro. Tudo está reduzido à questão econômica. Poesia não dá camisa a ninguém (como era comum afirmar em tempos ancestrais). Mesmo assim, a leitura consolida um ato de resistência contra a objetificação – especificamente – da poesia e do poema.   

En la lucha de clases / todas las armas son buenas / piedras / noches / poemas, escreveu Paulo Leminski, para nos lembrar que o ato poético está intrinsecamente ligado com a política e que, simultaneamente, o poema, mais do que um catálogo de emoções, não deve (não pode) ficar à margem da História e sem reagir aos acontecimentos. Essa conversa de I have measured out my life with coffee spoons (tenho medido minha vida com colherinhas de café), do T. S. Eliot, não combina com quem vê a poesia como proposta política, social e econômica.

Você entra na livraria e vai procurar pelos livros de poesia? Eu vou. E, claro, são poucos, quase nenhum, os que encontro. Na mentalidade utilitarista, há quem imagine que esses livros estão ocupando o espaço dos besta-sellers, dos livros que projetam lucro. O comum é encontrar publicações destinadas ao universo escolar, alguns títulos da lista de leituras para o vestibular.  Os outros, aqueles que o leitor interessado na poesia (no versificar do existir) procura, talvez estejam em locais obscuros, embaixo de uma escada ou no fundo do estabelecimento. Com sorte talvez seja possível localizar um ou outro lançamento (desde que sejam de alguma editora conhecida), livros que foram recomendados pelos pseudocríticos das redes sociais e que receberam miríades de adjetivos sem substância, algo parecido com “manifestação de sensibilidade e delicadeza de quem sabe interpretar o mundo através de imagens inigualáveis”.

A poesia mimetiza Medusa – ser mitológico com cabelo de serpente, corpo escamoso e que transformava em pedra aqueles que a olhassem diretamente. Uma probabilidade: o medo afasta o leitor de poesia. E se alguém for capaz de traduzir os seus desejos mais íntimos – aqueles que esconde inclusive de si mesmo – e os revelar ao mundo? Esse espelho não tem boa aceitação no mundo a-pós-o-moderno. Surge em represália para essa ameaça (fragmento de rocha ou estátua de sal) o ódio à poesia. Um afastamento seletivo, uma negação de tudo o que constitui o humano. Ben Lerner escreveu um ensaio erudito sobre o tema e concluiu dizendo: Tudo o que peço aos odiadores – dos quais eu, também, sou um – é que se esforcem para aperfeiçoar seu desprezo, pensando até em levá-lo a se relacionar a poemas, em que ele será aprofundado, não dispersado, e em que, criando um lugar para a possibilidade e as ausências presentes (como as melodias não ouvidas), ele pode chegar a se parecer com amor.   

Talvez seja isso: a poesia desencadeia tempestades, causa contradições, nos faz entrar nas livraria, procurar por livros de poesia e ser surpreendido por Cristina Peri Rossi:


É bom lembrar – ante tanto esquecimento –

que a poesia nos separa das coisas

pela capacidade que tem a palavra

de ser música e evocação,

além de significado,

o que permite amar a palavra infeliz

e não o estado de infortúnio.

Tudo isso não precisaria ser dito outra vez

se o leitor

– tão desmemoriado quanto qualquer poeta –

recordasse um poema de João Cabral de Melo Neto:

flor é a palavra

flor, verso inscrito

no verso,

que li há anos,

esqueci depois

e hoje voltei a encontrar,

como você, leitor,

leitora,

faz agora.  



Peter Worsley. Woman reading. Oil on canvas.


quarta-feira, 1 de outubro de 2025

KITCHEN

 


Acontece. Muitas vezes. O leitor compra o livro e não o lê. Emparedado na estante, o volume fica hibernando por tempo indeterminado. Somente volta à vida por algum motivo aleatório. Foi esse o caso com a primeira edição de Kitchen, de Banana Yoshimoto (Editora Nova Fronteira, 1995. Tradução de Julieta Leite).

O lugar que eu mais gosto neste mundo é a cozinha, afirma Mikage Sakurai, protagonista da primeira narrativa (a segunda se chama Moonlight shadow). Com esse início, o texto poderia enveredar para algo relacionado com a gastronomia, aqueles dramas complicados de chef de cuisine, a luta por conseguir clientes, estrela Michelin e, fundamentalmente, superar a ansiedade e a loucura. Nada disso. Quer dizer, o mundo culinário está presente, mas não ocupa o primeiro plano. A questão principal tem outros sabores: afeto e luto. E isso está expresso com delicadeza e poesia.

Após o falecimento de sua avó (que a criou após a morte dos pais), Mikage vai morar com os Tanabe (Yuichi e Eriko) – pessoas que lhe eram completamente estranhas. São seis meses especiais em que a hóspede se sente acolhida. Em determinado momento, ela vai morar em outro lugar: naquele verão tinha-me dedicado a aprender sozinha a arte de cozinhar. O mundo adquire outro formato, na medida em que Mikage vai descobrindo sua verdadeira vocação profissional.

O retorno acontece quando Yuichi lhe comunica que Eriko foi assassinada. Essa reaproximação através da perda parece conduzir ao estágio que contesta a afirmação: Para nós dois, o outro era a pessoa mais próxima no mundo, o amigo insubstituível.

A voz de Mikage vai relatando as complicações existenciais, uma longa reflexão sobre o que significa estar sozinha no mundo, sem ter em quem se apoiar. É o sofrimento que envolve Yuichi que altera a ordem dos sentimentos de Mikage: Yuichi, não quero perder você. Nós dois, vivendo sozinhos, sempre vivemos sem pensar muito nisso, da forma mais indolor possível. Não podíamos fazer outra coisa: a morte, que na nossa idade não deveríamos ter conhecido tão de perto, era pesada demais para nós. Pode ser que no futuro, estando comigo, você passe por dores, dificuldades, problemas, mas, se você quiser, podemos construir uma vida complicada, mas mais feliz que uma vida solitária.  

Não é exatamente um happy end, mas indica que os dois jovens vão construir um caminho menos triste.


Moonlight shadow é uma pequena novela que complementa o volume e que transita por algo que poderíamos chamar de sobrenatural. Os jovens Hitoshi e Yomiko morrem em acidente. Seus parceiros Satsuki e Hiiragi (irmão de Hitoshi e namorado de Yomiko) têm dificuldades para superar a morte.

A pessoa amada só devia morrer depois de uma longa vida. Perdi Hitoshi aos vinte anos, diz Satsuki, a narradora.

Em dado momento, quando Satsuki está bebendo chá enquanto olha para o rio que divide a cidade, surge em cena Urara, uma espécie de anjo da anunciação. É uma situação estranha, onde aparecer e desaparecer se torna a regra geral. No lugar onde morreu alguém que a gente amava, o tempo para por toda a eternidade.

Moonlight shadow (inspirada na canção de Mike Oldfield) é uma narrativa sobre sonhos, conexões com a morte, tristeza e superação do passado – usando uma linguagem sensível, onde cada palavra adquire o caráter de um dom precioso, capaz de exprimir os sentimentos humanos.


 

P.S.: Banana Yoshimoto é o pseudônimo que Mahoko Yoshimoto, em uma referência às flores vermelhas da bananeira. É autora de Kitchen (Editora Nova Fronteira, 1995; Editora Estação Liberdade, 2025), Tsugumi (Editora Estação Liberdade, 2015), e Doce Amanhã (Editora Estação Liberdade, 2024).


sábado, 20 de setembro de 2025

O HIPOPÓTAMO

 


Em um tempo distante, antes do mundo ser o que Rodrigo entende como o mundo, aconteceram muitas coisas estranhas. Esse descompasso pode ser medido por sua pouca idade (sete, oito anos), pelas relações com os colegas na escola em São Paulo, pelas visitas aos avós em Porto Alegre, pelas inúmeras descobertas que a vida vai lhe apresentando a cada instante.  

São muitos os sinais de que algo não está bem. As crises nervosas da mãe, as marcas no braço da mãe (nove bolinhas espalhadas aleatoriamente do pulso até a metade do antebraço, pequenos círculos escurecidos e enrugados que mais parecem as pegadas de um hipopótamo em miniatura), a separação do pai e a mãe (um dia, muito tempo atrás, numa época tão remota quanto a dos dinossauros, aqueles dois continentes estiveram unidos), as perguntas recorrentes do pai sobre a mãe, os namorados da mãe.

Durante um período das férias, em Porto Alegre, Rodrigo e a mãe saem para comprar leite. Nesse momento a rotação da Terra é alterada, tudo adquire um outro andamento. Rodrigo demora um pouco para perceber, dá alguns passos sozinho até ouvir o estalo atrás de si. Vira e flagra a mãe imóvel, a barra da saia encharcada de leite, a garrafa quebrada rolando por baixo da gôndola. Ela tem a boca entreaberta, os braços jogados ao longo do corpo, o olhar fixo para o fundo do corredor, onde um funcionário etiqueta produtos e um velhinho de boina escolhe sabão em pó.

Essa cena, completamente incompreensível para o menino, gera uma mudança nas relações familiares que aos poucos se torna perceptível e começa a incomodar: quando voltam para São Paulo, as notas na escola despencam, o isolamento aumenta e nada parece fazer sentido. Sem conseguir explicar o que está acontecendo (inclusive porque ficou muito confuso quando viu uma conversa complicada entre o pai e a mãe), Rodrigo passa a ser outro – diferente daquele que se divertia com as histórias que o avô contava (inventava) sobre Winnetou. 

E assim, como se estivesse desenhando o percurso com traços que estão perdendo a nitidez, um pouco borrados, Rodrigo vai crescendo, vai descobrindo que ultrapassar a infância e mergulhar na adolescência – essa antecâmara da vida adulta – sempre será um processo doloroso.

A transição produz algumas compensações. A principal é a que proporciona (em lugar do isolamento e solidão) a possibilidade de abrir espaço para que Rodrigo adquira voz, e possa expressar todas as suas dúvidas e, ao mesmo tempo, exorcizar os seus fantasmas e os da mãe.  

A tempestade envolve o carro como um lençol azul. Por um momento nada parece se mover: o carro roda sem sair do lugar, a mãe dirige sem mexer um músculo; o próprio Rodrigo parece envolvido por uma casca fria e dura. Seria bom seguir assim, seria perfeito, estar dentro de algo mas fora do mundo, os dois boiando num presente puro, uma tarde infinita. Seria perfeito, mas o barulho do limpador o devolve à realidade, ao metralhar da chuva, aos carros que ultrapassam e buzinam ao redor, e embora olhe fixamente para a frente a mãe de certa forma também o observa, suas mãos agarradas ao volante o encaram, e seus braços, e as marcas em seus braços, e Rodrigo sente que poderia dizer alguma coisa, que esse seria um ótimo momento para começar a falar.

O narrador onisciente de O Hipopótamo (Chico Mattoso, Editora Todavia, 2025) conseguiu impor um tom lírico nessa espécie de bildungsroman (romance de formação), mas sem omitir o quanto é doloroso descobrir que o passado sempre cobra tributo ao presente. A história que uniu e separou os pais de Rodrigo é também uma parte da história do Brasil.

 

Chico Mattoso é o autor dos romances Longe de Ramiro (Editora 34, 2007) e Nunca vai embora (Editora Companhia das Letras, 2011).


sexta-feira, 5 de setembro de 2025

PAPAI

 


Os dez contos de Papai, de Emma Cline (Editora Intrínseca, 2025. Tradução: Marcello Lino) transitam pelo mal-estar, pelo desconforto. Todos os personagens estão deslocados – como se um imenso naufrágio os atingissem, a água subindo lentamente, a falta de ar se fazendo sentir, tudo ao redor desmoronando, a aflição de não encontrar saída para situações constrangedoras ou trágicas.   

Esse estranhamento está presente em todas as narrativas – que, de certa forma, tentam retratar a realidade familiar contemporânea: casais separados, traições conjugais, filhos que nunca correspondem à imagem que os pais projetaram, pais que perderam a conexão com os filhos, adultização de crianças. O inferno dentro de casa (mesmo para aqueles que vivem em locais separados).   

Embora sejam narrativas lineares (começo, meio e fim – nessa ordem), o que se destaca é a ação narrativa intermediária e o anticlímax nos desfechos (os conflitos nunca são resolvidos). Como se fosse consequência natural, quase todos os personagens se decepcionam.

As desavenças entre as gerações se manifestam, em What can you do with a general, como uma batalha não declarada, mas que é capaz de implodir sentimentos e ampliar as mágoas.

Richard, o pai ausente precisa ir até um colégio particular para conversar com o filho, que cometeu um ato violento (não nominado). O contraste entre os dois personagens estabelece o cerne de Northeast regional.  

Uma história banal, A babá, adquire contornos específicos na medida em que envolve terceiros – e que, com isso, têm as suas vidas modificadas, embora não ocorra nenhuma tragédia, apenas o desconforto ao hospedar a filha de uma amiga (que se envolveu sexualmente com o pai da criança que cuidava).

Tudo está envolto no incômodo. Em Arcádia, Peter vai morar na fazenda que pertence aos irmãos Otto e Heddy (sua namorada grávida). Os acontecimentos vão enredando-o de tal forma que só resta para Peter a resignação.

O filho de Friedman aborda uma situação embaraçosa: George, na companhia de um amigo, precisa assistir ao curta-metragem dirigido pelo filho (um desses sujeitos que está longe de corresponder à imagem que o seu pai sonhou como ideal para o filho).

A primeira vez que Emma Cline teve algum destaque no Brasil ocorreu quando a revista Granta em Língua Portuguesa (nº 1, Editora Tinta-da-China, maio de 2018) publicou Los Angeles. Uma mulher, que trabalha em uma fábrica de roupa intima feminina, vende – pela Internet – algumas peças usadas. A parafilia aparece de diversas formas e conduz a protagonista ao abismo das ilusões capitalistas. Um exemplo de como são complicados os caminhos do desejo.    

O melancólico A balada de Mackie Messer relata os desencontros entre três amigos. Mas, o pano de fundo mostra que o desequilíbrio transcende a questão econômica (que impacta todos os personagens) e se estende até os filhos e as (ex)companheiras. O mundo reconhecido como tal deixou de existir, tudo o que sobrou foram as lembranças de um tempo que não existe mais.    

Dois contos fogem do ordenamento geral. Em Menlo Park, um revisor é contratado para trabalhar em livro escrito por ghost-writer. Não demora muito para que ele coloque tudo a perder. No segundo, Marion, uma menina de 13 anos manifesta obsessão sexual por homem mais velho. Esse comportamento é observado ingenuamente por outra menina – que, aos 11 anos, não consegue entender direito o que está em jogo.

No último conto, I/S/L, a banalidade do mal está localizada em uma clínica de reabilitação. A presença de uma celebridade – acusada de importunação sexual – modifica comportamentos e cria uma atmosfera peculiar (embora transcorra em aparente normalidade).

A acidez que corrói cada uma das narrativas de Papai espelha o modo de vida contemporâneo – mistura de ansiedade, sexo e infelicidade. A decadência do Império, por maior que sejam as expectativas, está expressa, no final de cada dia, no medo de fracassar. Então, para aliviar as tensões, para tentar encontrar a utopia prometida pela sociedade de consumo (e que nunca será saciada), poucos conseguem resistir aos paraísos artificiais proporcionados por cocaína, barbitúricos e pornografia.


Emma Cline


sexta-feira, 22 de agosto de 2025

MORRENDO DE RIR

 


Encontrei em Morrendo de Rir (Editora Arquipélago, 2025), o livro de crônicas da Elvira Vigna (1947-2017), a afirmação clássica: não sorrio pras pessoas pra quem devia sorrir. Mais do que uma mot d’esprit, a frase (e suas variações) acena para uma formula comportamental – dessas que esbanjam bom comportamento, of course. E isso quer dizer que, em um mundo “ideal”, onde se deseja bife e cerveja, só nos servem um líquido com nome impronunciável e entrecôte. A vida é desencontro – talvez Papua-Nova Guiné seja o destino final.

(Se alguém estranhou o tom fora de tom do parágrafo acima, até que nem tanto esotérico assim, aconselho correr até a livraria mais próxima e comprar o livro da Elvira. Na leitura tudo – ou nada – se esclarecerá. Quer dizer...)  

Lá pelos idos da metade de 2010, troquei algumas mensagens pelas redes sociais com Elvira Vigna. Coisa pouca, que iniciou com um texto em que citei a importância de algumas escritoras (Elvira entre elas). Depois, escrevi uma resenha para O que deu para fazer em matéria de amor (que, salvo engano, ela não desgostou). No intervalo entre uma coisa e outra, ganhei dois livros autografados (Deixei ele lá e vim e Vitória Valentina). Foram instantes de alegria. E que agora estão se renovando com as crônicas de Elvira. Não sei o que outros leitores pensarão sobre o que ela pensava do mundo literário (“O que você acha da Flip?” “Um Simba Safari.”), sobre o que significa encontrar um ou outro leitor nas esquinas da vida, sobre “música de preto”, sobre o prazer de ficar no meio do caminho assistindo o ruminar melancólico de Mimoso, sobre o machismo (homem é um bicho que não tem ouvidos sintonizados para o comprimento de onda da voz feminina) e, last but not least, sobre a importância das echarpes azul-turquesa. Talvez alguém não goste. Eu gostei. Inclusive das saraivadas de insultos (...mandei à merda. Mas de maneira fina porque sou fina. Quase sempre.).

 


O mundo é um moinho, sempre a triturar os sonhos, a exigir condutas exemplares – e Elvira era avessa a esses comportamentos de andorinhas que atravessam os continentes com regularidade. Seus rituais de beleza envolviam outros mistérios (os olhos úmidos de afeto). Por instinto, em lugar de carinho, preferia enfiar as unhas na vaidade alheia. E para que isso acontecesse, antes da standing ovation, multiplicava as sacanagens semânticas. Ou seja, a ironia e o sarcasmo desfilavam triunfantes nas entrelinhas, nos subtextos, nas referências nem sempre explícitas (choque de lucidez). Para decifrar tantos enigmas talvez fosse necessário frequentar um desses cursinhos pré-vestibular. Um pouco de Cultura (assim mesmo, com maiúscula) não faz mal a ninguém.

Estilista (escrevo esquisito, declara em exercício de autocritica), Elvira flertava com o anarquismo literário, coisa pouca, nada que entusiasmasse Kropotkin ou Bakunin, inclusive porque as doses de veneno que administrava nos incautos nem sempre eram fatais.  Ela sabia que existe um (in)certo prazer em oferecer humor ácido para o povo satisfeito com pequenas mesquinharias. Mesmo que eles não entendam a essência da trama e do drama. Na verdade, é melhor que continuem na ignorância. O gozo fica delicioso.

A sinfonia, sob regência de Elvira, sempre mostrou muitos acordes dissonantes – é preciso ter ouvido afinado para perceber o tema que está sendo executado (sim, o trocadilho foi proposital). Depois, eu tive várias oportunidades de consertar minhas opções erradas e partir para um cotidiano de emoções, perigos, festas, gargalhadas de boca fechada – então, e ainda, uma de minhas invejas. Não aproveitei nenhuma. Mas se essa confissão sobre a recusa dos hábitos burgueses ainda não convenceu o leitor, basta ler um trecho da crônica sobre o showroom de moda: Arregimentei, como sempre, a Maria Helena, que, como sempre, não tinha nada para fazer e uma enorme vontade de fazer fosse lá o que fosse, e a minha prima. É uma prima muito útil porque é gerente de butique. Achei que seria a nossa bengala branca, o nosso cachorro labrador, com certeza saberia dizer alguma coisa a respeito do que veríamos, um comentário, um muxoxo, enfim algum tipo de ruído a respeito do que viria e eu não tinha a menor ideia do que viria. Nunca, nunquinha, ninguém usou – como Elvira – das palavras como se fossem lâminas, dessas que produzem/promovem cortes sangrentos.

Não é por acaso que as artes plásticas fazem parte da vida de Elvira – desenhar figuras e sentimentos com lápis 2B, 4B, 6B, ilustrações com muitos “bs”. Gosto de pintores, eles veem sempre coisas incríveis (...) um mundo completamente diferente desse, a gente é que não vê. Leonardo da Vinci, Vincent van Gogh, Amilcar de Castro e outros menos cotados – o sentimento em expansão, decifrar manchas na parede, cores destruindo o preto-e-branco daqueles que querem fiscalizar a vida alheia (cuidado redobrado, meninas, com os neoliberais!!!!).

É isso, o leitor não sabe o que virá ao virar cada uma das páginas de Morrendo de rir. Todas as crônicas são propostas de briga (Estou me convencendo, a cada dia, que o normal é o mau humor), mas sempre ligando lé com cré. Outdoor em letras garrafais avisando que o inimigo deve ficar alerta o tempo todo. Ele é o alvo, nunca estará a salvo.


Elvira Maria Vigna (1947-2017)


terça-feira, 19 de agosto de 2025

SINAIS DE NÓS

 


Lina Meruane, ao descrever a enchente de 1982, que destruiu parte de Santiago, surpreende o leitor com uma frase quase imperceptível: olhávamos mesmo era para o teto, não para o naufrágio à nossa volta. Mais do que uma observação sobre a tragédia climática e a casa repleta de goteiras, o sentido metafórico espelha a história chilena e os horrores protagonizados pela ditadura de Augusto Pinochet (1915-2006).

Poucas vezes é possível perceber que o país está desmoronando, principalmente se você for uma criança entre 8 e 12 anos de idade. Com o olhar voltado ao passado, tentando conectar o que sabia naquela época com a visão do presente, as frases iniciais de Sinais de nós (Editora Relicário, 2025. Tradução de Elisa Menezes), um livro pequeno, 67 páginas, se mostram perturbadoras: Ninguém sabia de nada. Ninguém, como era possível? A violência recrudescia no país (...). Mas ninguém que conhecíamos havia sido demitido do trabalho ou tido a casa invadida, ninguém havia sido preso, interrogado, torturado; ninguém havia desaparecido, dinamitado, degolado a sangue-frio, queimado a sangue quente. Ninguém: era isso o que nós, meninos e meninas do colégio britânico, achávamos.

Em tempos de crise política, negar algumas situações costuma ser uma forma de defesa. Mas, por quanto tempo é possível manter essa cegueira? Nas periferias, a história era diferente, como mostraram mais tarde, por exemplo, os filmes Machuca (Dir. Andrés Wood Montt, 2004) e No (Dir. Pablo Larrain, 2012), que abrangem um longo período – cerca de 17 anos. O regime ditatorial iniciou em 1973 e somente foi substituído em 1990 (decorrência do plebiscito de 1988).

E a violência recrudescia sem nos tocar, sem ferir os nossos. E a Junta Militar decretava que as denúncias eram falsas ou que os desaparecimentos e as execuções eram suposições, pois não havia corpos que os comprovassem. E na falta de provas materiais nossos pais podiam afirmar, sem sentir que mentiam, que eram rumores infundados.  

São os pequenos incidentes que começam a chamar a atenção: um(a) aluno(a) que troca de escola ou que parece não ter existido (mesmo tendo sentado ao lado da narradora), os uniformes militares como vestimenta comum, o preço dos alimentos nos supermercados, a proibição de quaisquer tipos de reuniões, o toque de recolher. O corpo perverso do Estado, que massacra o corpo dos chilenos, vai transformando a infância em amargor, embora esse processo ocorra em conta-gotas.

A família de Lina Meruane desfrutou de algumas vantagens: os pais eram médicos e durante algum tempo puderam viver em Estados Unidos. A volta foi traumática, um mundo completamente diferente: Quando aterrissamos no colégio britânico, dois anos depois, descobrimos que pouquíssimas crianças falavam outra coisa além da língua chilena, que meu irmão achou difícil e eu, ininteligível. O estranhamento se mostrou maior quando Lina conversou com uma amiga da escola, que estava machucada, o braço engessado, hematomas por todo o corpo, e descobriu que o pai dessa menina estava escondido: (...) sussurrou que tinha acabado de falar com o pai, mas só umas palavrinhas porque ele ligava para ela com moedas de um telefone público, ele, que havia meses tinha se mandado sem que ela soubesse para onde.

Casos similares começaram a se repetir, a suspeita de ser contra o regime ditatorial acionava o aparelho repressivo e as prisões se multiplicavam. Neste período, algumas pessoas somem misteriosamente (que, muito mais tarde, descobriu-se que tinham sido mortas em sessões de tortura). Não tão perto mas às nossas costas, a violência política seguia impactando frontalmente os corpos cidadãos: por decreto, eles eram despidos de seus direitos cívicos, tinham sua legítima defesa legal negada, eram acusados de insubordinação, traição, terrorismo.  Foi um período em que os chilenos aprenderam a calar – e que a geração de Meruane só conseguiu superar quando entrou na Universidade e pode perceber que a redoma de vidro imposta pela ditadura militar estava rachada e que o ar que soprava de fora para dentro era de melhor qualidade.  

Retrato de época, o livro de Lina Meruane mostra, sob o olhar de uma criança, as transformações que ocorreram durante um período histórico turbulento.  

Não é verdade que nossas lembranças sejam apenas lembranças de uma lembrança.

 

Lina Meruane Boza

Obs. 1: Sinais de nós é o oitavo volume da coleção NOS.OTRAS, publicada pela Editora Relicário. Os outros volumes são: Viver entre línguas (Sylvia Molloy), E por olhar tudo nada via (Margo Glantz), Tornar-se Palestina (Lina Meruane), O mundo desdobrável (Carola Saavedra), A irmã menor (Mariana Enriquez) Posta-restante (Cynthia Rimsky) e 38 estrelas (Josefina Licitra).

Obs. 2: A literatura de Lina Meruane tem obtido boa recepção no Brasil. Além dos dois volumes que integram a coleção NOS.OTRAS, foram publicados o ensaio Contra os filhos (Editora Todavia, 2018) e os romances Sangue no Olho (Editora Cosac Naify, 2015) e Sistema Nervoso (Editora Todavia, 2020).  


segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O(S) NADADOR(ES)

 


São duas narrativas muito diferentes, mas que tratam (de certa forma) de um estilo de vida em extinção. Os Nadadores, de Francis Scott Key FitzGerald (1896-1940), é de 1929; O Nadador, de John William Cheever (1912-1982), foi publicado em 1964.

 

Francis Scott Key FitzGerald (1896-1940)

O conto de Scott FitzGerald espelha um dos grandes mitos da identidade masculina: o adultério. Ao perceber que a esposa não lhe é fiel, o bancário Henry Clay Marston deixa escapar um comentário sarcástico: Nunca é tarde para se adotar uma atitude de marido francês. Seguindo esse ritmo fora de seus padrões sobre o que pode (e não pode) acontecer no mundo familiar, resolve levar a esposa e os dois filhos para passar algum tempo na praia em Saint-Jean-de-Luz (região administrativa da Nova Aquitânia, departamento dos Pirenéus Atlânticos, noroeste da França, próxima da fronteira com Espanha). Ao perceber que uma desconhecida (de, talvez, uns dezoito anos) estava se afogando, entra no mar para resgatá-la. Como se estivesse protagonizando uma comédia pastelão, quem precisou ser socorrido foi ele. Não sabia nadar. Então, alguns dias depois, a jovem (inominada), que vive viajando pelo mundo para nadar em diferentes lugares, se predispôs a ensinar-lhe (e aos filhos) o básico da natação. Este é o ponto decisivo da vida de Henry.

Depois daquele incidente em Paris, Henry decidiu que a melhor política seria compreender, perdoar e tentar preservar o casamento como algo alheio aos caprichos do amor. Então, para afastar a esposa das tentações, resolve aceitar uma proposta de trabalho e voltar para Richmond (estado de Virgínia, leste de Estados Unidos). Uns três anos depois descobre que a vida não se preocupa com repetições e que algumas coisas nunca terão conserto. A esposa tinha um outro amante. Desta vez, um milionário sem escrúpulos.

Quando as dificuldades ficaram insuperáveis, inevitáveis, Henry procurou consolo no mar. Durante três anos, nadar se tornara uma espécie de fuga, e ele dedicou-se àquilo como quem se dedica à música ou à bebida. Houve um ponto em que parou de pensar e decidiu ir para a costa da Virgínia, afim de nadar e afogar as mágoas no oceano. Em algum momento foi preciso tomar duas decisões drásticas: divórcio e voltar para a França. Exigiu ficar com os filhos, mas a esposa não concordou. O impasse foi resolvido em uma lancha do amante. No rio James, Henry foi ameaçado de forma bastante óbvia: Pois bem, dinheiro é poder, Marston. Repito, dinheiro é poder. O amante, ao agir desta forma selvagem, típica dos que acreditam na força para conseguirem o que querem, estabelece as bases da chantagem.

Tudo parece estar resolvido, mas o motor da embarcação falhou e o barco ficou à deriva. Na eminência da lancha se chocar com as rochas da costa, Henry aproveita o seu grande triunfo para inverter a situação: ele sabe nadar. O resto da história não tem grande relevância, exceto pelo fato de Henry encontrar, outra vez, a jovem nadadora e lhe perguntar: Por que você gosta tanto de nadar? Não há resposta satisfatória para a questão, nem mesmo se a pergunta fosse dirigida para ele.

 

John William Cheever (1912-1982)

No conto de John Cheever, O Nadador, a história se mostra mais complexa. Ned Merril está na casa de amigos, tomando gim na beira da piscina, quando decide voltar para casa (situada a 13 quilômetros de distância). Ele escolheu um trajeto inusitado: ir nadando. Quer dizer, fazendo escalas nas diversas piscinas que existem pelo caminho. Em uma interpretação freudiana bastante rasa, essa escolha remete ao líquido amniótico – e, consequentemente, à eterna vontade de voltar ao útero materno. Nadar na piscina (o corpo preso em espaço físico determinado, onde qualquer gesto causa turbulências e espasmos) pode ser interpretado como a procura do lugar primitivo, onde existe proteção contra os horrores da vida cotidiana. Contraditoriamente, revela a vontade incontrolável de romper a bolha aquática e, finalmente, poder respirar por conta própria. Esse embate também espelha a própria existência do personagem que, sob alguns aspectos, se parece com Forrest Gump, na medida em que o esforço para chegar ao destino parece levar ao nada, exceto ao cansaço. 

A aventura proposta por Ned está diretamente relacionada com um sistema econômico e social. O glamour da vida dos milionários, que acordam todos os dias com a sensação de Ontem eu bebi demais, parece estar se diluindo lentamente. Em cada piscina (mergulhar, voltar à tona, sair da água, caminhar até a próxima) isso se torna cada vez mais visível – mas que somente se revela integralmente no último parágrafo do conto.

 


P.S.: Existem outras narrativas em que o espaço aquático se mostra decisivo na estrutura ficcional. Desde os romances clássicos de aventuras marítimas de Robert Louis Stevenson, Joseph Conrad, Júlio Verne e Emílio Salgari até narrativas contemporâneas como os romances Fôlego (Tim Winton), A Carta Esférica (Arturo Pérez-Reverte), Esforços Olímpicos (Anelise Chen) e a novela A Piscina (Yoko Ogawa). O cinema também contemplou o tema. Por exemplo, o conto de John Cheever foi adaptado como O Nadador (The Swimmer. Dir. Frank Perry, 1968). Outra possibilidade é o filme australiano O Campeão (Swimming Upstream, Dir. Russell Mulcahy, 2002), em que parte do mundo competitivo da natação (e da estrutura familiar) é dissecado.  


segunda-feira, 4 de agosto de 2025

ORBITAL

 


Seis astronautas (quatro homens, duas mulheres) estão na Estação Espacial Internacional. Enquanto esperam ser substituídos, conversam, mergulham em lembranças pessoais, observam o planeta. Enfim, Orbital, de Samantha Harvey (DBA, 2025. Tradução: Adriano Scandolara), vencedor do Booker Prize 2024, é um daqueles livros onde não acontece nada. As trocas de informações pessoais quase inexistentes não ajudam no romper da monotonia – que é a regra geral. O ritmo narrativo parece estar em câmera lenta e isso impede que surja qualquer tipo de tensão. O pensamento se sobrepõe às ações.

São os detalhes que compõem a narrativa – seja com os pés no chão, seja o corpo flutuando. E a maneira como eles se deslocam pelo labirinto da nave, como se fosse um naufrágio – os espaços apertados, as escotilhas que dão para tubos estreitos que se conectam aqui e ali em padrões quase idênticos. O sentimento claustrofóbico está presente a todo instante. Mesmo assim, no dia a dia, cada um dos tripulantes precisa realizar uma série de tarefas específicas dentro e fora do veículo espacial (exercícios físicos, experiências científicas, fotografar e filmar o planeta, manter a espaçonave funcionando, instalar instrumentos que forneçam informações sobre o mundo espacial). A norma está em seguir incansavelmente os rituais de sobrevivência em um mundo artificial. Não há situações de emergência ou ameaças extraterrestres.         

Aqueles que (de uma forma ou de outra) estão temporariamente exilados no espaço, condenados à repetição interminável que o percurso espacial lhes oferece, assistem os movimentos essenciais do planeta (rotação, translação): a nave segue em órbita, deslocando-se de continente em continente, norte e sul, um olho obsessivo a observar, reunindo e calibrando a luz. Um espetáculo somente acessível para raros privilegiados. E repleto de surpresas. O sol iluminando territórios, a aurora boreal, a devastação que acompanha os tufões, vulcões em erupção, a luz refletida na lua, o modo como o planeta parece respirar, a sensação utópica de que as fronteiras geográficas não foram recortadas por guerras e ambições desmedidas. Continentes e países chegam um depois do outro, e a Terra dá a impressão de ser – não pequena, mas quase infinitamente conectada, uma epopeia de versos que jorram. 

Existem outras coisas, outras emoções, sensações peculiares, difíceis de expressar com palavras: Quando os seis conversaram sobre a caminhada espacial de cada um depois, descreveram um déjà-vu – eles sabiam que tinham estado lá antes. Roman diz que talvez tenha sido causado por memórias ocultas de estar no útero. Para mim, essa é a sensação de estar no espaço, ele disse. Não ter nascido ainda.  

Observar a imensidão que separa o planeta e o universo desconhecido (planetas, galáxias, estrelas, buracos negros, etc.) por aqueles que se aventuram no mundo exterior não significa paz, tranquilidade ou serenidade. A redoma artificial que abriga os astronautas por vários meses (eles estão tão juntos e tão sozinhos) não os protege das lembranças do que viveram (ou deixaram de viver) na Terra e que agora estão presentes em tudo o que fazem: a morte da mãe de Chie, o cartão postal com a pintura de Velásquez, a ausência de um tapete, a fissura minúscula na parede da estação espacial, os amigos isolados em uma ilha do Pacífico, saudades da família, o nódulo no pescoço de Anton, o foguete cujos propulsores, durante o lançamento, queimam o combustível de um milhão de carros.  

Orbital: exercício de linguagem, filosofia e ternura, relato sobre o isolamento físico e emocional, potência literária, práxis poética.


Samantha Harvey


segunda-feira, 28 de julho de 2025

ALFABETO RUSSO




As 33 letras do alfabeto cirílico (que deriva do alfabeto grego) são adotadas – oficialmente – por seis línguas eslavas: russo, ucraniano, bielorrusso, búlgaro e macedônio. Mas, na prática, essa forma de escrita está presente na imensidão multicultural de parte da Ásia – e isso dificulta determinar a quantidade exata de usuários. 

Como se estive construindo uma espécie de matrioshka (матрёшка) literária, Marina Berri reuniu 33 pequenos ensaios (um para cada letra do alfabeto) em um dos mais interessantes livros sobre linguística, lexicografia e a história da Rússia. Na medida em que o leitor vai lendo o livro, as camadas culturais se multiplicam. Em cada verbete a palavra emerge do dicionário e, através de interseções literárias, cenas de filmes e citações sobre artes plásticas, além das recordações relacionadas com as viagens que Mariana fez, o leitor se surpreende com uma explosão de reflexões e descobertas – elementos que fornecem um sabor especial ao conhecimento.



Alfabeto Russo (Editora Fósforo, 2025. Tradução de Marina Waquil), livro vencedor do Prêmio de Não-Ficção Latinoamérica Independente 2024, fornece um retrato (quase coloquial) da Rússia (antes e depois da era soviética) através de um painel lírico, que projeta a imagem de um país que (em muitos aspectos, principalmente os ideológicos) costuma ser ignorado no Ocidente. Com a elegância de quem domina a tessitura textual, a professora da Universidade de Buenos Aires descreve tanto a aventura protagonizada por Yuri Alexeievich Gagárin (1934-1968) como as confusões promovidas pelo elefante Chango (um dos mais famosos habitantes do zoológico de Moscou). Ao mencionar o Hermitage detém o olhar sobre os brinquedos autômatos e os inúmeros gatos que passeiam pelos corredores do museu (moram nos porões, protagonizam histórias e têm até uma placa própria que avisa: “Cuidado gatos”). Na companhia dos filhos, Milo e Gabriel, assiste desenhos animados – artifício que utiliza para adentrar no universo do letramento do idioma russo.

Livros estão presentes em todo o percurso intelectual que constitui Alfabeto Russo, mas a preferência por alguns escritores, que são citados várias vezes, é inegável: Lev Nikolaievich Tolstói (1828-1910), Ivan Alekseyevich Búnin (1870-1953), Vladimir Vladimirovich Nabokov (1899-1977) e Joseph Brodsky (pseudônimo de Iosif Aleksandrovich Brodsky, 1940-1996). As narrativas desses autores servem de suporte para algumas expressões possam ser investigadas e interpretadas. Ao ampliar a riqueza lexical através de exemplos literários, facilita a compreensão do idioma e permite que, ao encontrar determinadas palavras, possa-se fazer as conexões e multiplicar o entendimento na medida em que os significados e etimologia dos vocábulos são apreendidos.  

Marina, ciente de que todos os idiomas são organismos vivos – e que, por isso, estão em constante movimento, sofrendo modificações estruturais –, não se descuida e constata que são essas variações que estabelecem a fluidez semântica e permitem que o processo de comunicação não seja interrompido pela rigidez do léxico (que nem sempre é de domínio comum).

Mais do que um projeto ligado ao estudo de uma língua, Alfabeto Russo mostra que toda imagem (estrutura visual que só pode ser descrita pelas palavras) implica em um modo de ver – e a visão amorosa da Rússia que o leitor encontra no livro de Marina Berri só pode ser descrita por um adjetivo: belíssima.



Marina Berri