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segunda-feira, 28 de julho de 2025

ALFABETO RUSSO




As 33 letras do alfabeto cirílico (que deriva do alfabeto grego) são adotadas – oficialmente – por seis línguas eslavas: russo, ucraniano, bielorrusso, búlgaro e macedônio. Mas, na prática, essa forma de escrita está presente na imensidão multicultural de parte da Ásia – e isso dificulta determinar a quantidade exata de usuários. 

Como se estive construindo uma espécie de matrioshka (матрёшка) literária, Marina Berri reuniu 33 pequenos ensaios (um para cada letra do alfabeto) em um dos mais interessantes livros sobre linguística, lexicografia e a história da Rússia. Na medida em que o leitor vai lendo o livro, as camadas culturais se multiplicam. Em cada verbete a palavra emerge do dicionário e, através de interseções literárias, cenas de filmes e citações sobre artes plásticas, além das lembranças relacionadas com as viagens que Mariana fez, o leitor se surpreende com uma explosão de lembranças, reflexões e descobertas – elementos que fornecem um sabor especial ao conhecimento.



Alfabeto Russo (Editora Fósforo, 2025. Tradução de Marina Waquil), livro vencedor do Prêmio de Não-Ficção Latinoamérica Independente 2024, fornece um retrato (quase coloquial) da Rússia (antes e depois da era soviética) através de um painel lírico, que projeta a imagem de um país que (em muitos aspectos, principalmente os ideológicos) costuma ser ignorado no Ocidente. Com a elegância de quem domina a tessitura textual, a professora da Universidade de Buenos Aires descreve tanto a aventura protagonizada por Yuri Alexeievich Gagárin (1934-1968) como as confusões promovidas pelo elefante Chango (um dos mais famosos habitantes do zoológico de Moscou). Ao mencionar o Hermitage detém o olhar sobre os brinquedos autômatos e os inúmeros gatos que passeiam pelos corredores do museu (moram nos porões, protagonizam histórias e têm até uma placa própria que avisa: “Cuidado gatos”). Na companhia dos filhos, Milo e Gabriel, assiste desenhos animados – artifício que utiliza para adentrar no universo do letramento do idioma russo.

Livros estão presentes em todo o percurso intelectual que constitui Alfabeto Russo, mas a preferência por alguns escritores, que são citados várias vezes, é inegável: Lev Nikolaievich Tolstói (1828-1910), Ivan Alekseyevich Búnin (1870-1953), Vladimir Vladimirovich Nabokov (1899-1977) e Joseph Brodsky (pseudônimo de Iosif Aleksandrovich Brodsky, 1940-1996). As narrativas desses autores servem de suporte para algumas expressões possam ser investigadas e interpretadas. Ao ampliar a riqueza lexical através de exemplos literários, facilita a compreensão do idioma e permite que, ao encontrar determinadas palavras, possa-se fazer as conexões e multiplicar o entendimento na medida em que os significados e etimologia dos vocábulos são apreendidos.  

Marina, ciente de que todos os idiomas são organismos vivos – e que, por isso, estão em constante movimento, sofrendo modificações estruturais –, não se descuida e constata que são essas variações que estabelecem a fluidez semântica e permitem que o processo de comunicação não seja interrompido pela rigidez do léxico (que nem sempre é de domínio comum).

Mais do que um projeto ligado ao estudo de uma língua, Alfabeto Russo mostra que toda imagem (estrutura visual que só pode ser descrita pelas palavras) implica em um modo de ver – e a visão amorosa da Rússia que o leitor encontra no livro de Marina Berri só pode ser descrita por um adjetivo: belíssima.



Marina Berri

segunda-feira, 21 de julho de 2025

ESPINOSA

 


Quando um escritor falece, os seus personagens também morrem? Essa questão não tem resposta fácil. Em arte, nada se mostra ordenado com o rigor cartesiano ou com a coerência. Quando o leitor menos espera acontece a ressurreição de algum personagem. Há vários exemplos. O filho de Frank Herbert (1920-1986) decidiu continuar a saga Duna por mais alguns livros. David Lagergrantz publicou dois volumes da série Millennium após a morte de Karl Stig-Erland Larsson, mais conhecido com Stieg Larsson (1954-2004). O divertidíssimo Triste, solitário e final, de Osvaldo Soriano (1954-1997), retirou das telas a dupla Stan Laurel e Oliver Hardy (o Gordo e o Magro) e os envolveu em peripécias muito diferentes das trapalhadas que eles protagonizaram no cinema.

Recentemente, Livia Garcia-Roza efetuou um experimento semelhante. Seu marido, Luiz Alfredo Garcia-Roza (1936-2020), escreveu doze romances policiais que se passam entre Copacabana e o Bairro Peixoto – no Rio de Janeiro. Em onze desses livros, o protagonista é o delegado Espinosa. A exceção é Berenice Procura (Companhia das Letras, 2005).

Como uma espécie de manifestação complicada do luto, Livia fez o personagem voltar das profundidades que envolvem o esquecimento em Espinosa (Editora Faria e Silva, 2025). Ao interagir com a escritora (que também adquire, através desse artifício, o papel de personagem), essa projeção do marido morto materializa-se na representação de sentimentos, desejos e experiências que deixaram de existir. Ou seja, ao trazer para o mundo real uma figura de papel, a escritora almeja (de forma consciente ou de forma inconsciente) manter vivo um período emocional que se encerrou – mas que ela ainda não está preparada para aceitar.

A narrativa faz questão de pontuar que Espinosa gosta mais dos livros do que do exercício profissional. O delegado pouco vai à delegacia, passa a maior parte do tempo fazendo compras em sebos. Nos outros momentos ou está fazendo refeições em restaurantes ou frequentando bares ou cortejando Livia (a personagem). Os acontecimentos relativos ao cargo são descritos sem muita profundidade, como se fossem empecilhos ou uma moldura para o que realmente importa: um encontro entre a viúva e aquele que se apresenta como falta.

Desse modo transverso (travesso), o ato narrativo fornece sentido, direção e razão para que a escritura se pronuncie (em voz alta) entre as 112 páginas de um livro pequeno, porém intenso. É nesse amalgama entre os vivos e os mortos (a escritora e o personagem) que alguns membros da família são convocados a participar de uma história que deveria ser particular e que se tornou pública.

Personagens secundários como Andreia, Alice, Giovanna, Irma, Lucas, Nicolas, Esmeralda e Dodô poderiam ser descartados do enredo, pois não são significativos para o desenvolvimento da história – além de serem descritos da maneira mais ligeira possível, apenas para que o texto seja povoado por algo que não seja tão volátil quanto um personagem que deveria ter desaparecido quando da morte de seu criador.

Resumindo, falta substância em Espinosa, falta sabor. Sobra esse ajuste de contas entre uma escritora que resolveu usar um personagem de seu falecido marido para narrar o sofrimento causado pela ausência. O livro vale como uma sessão de autoanálise, mas fica devendo na espessura literária.  


Luiz Alfredo Garcia-Roza e Livia Garcia-Roza



sexta-feira, 18 de julho de 2025

QUANDO ANITA MALFATTI (NÃO) ENCONTROU EDWARD HOPPER

 

Anita Malfatti (1912)

No final de 1914, Anita Malfatti (1889-1964), financiada por seu tio, o arquiteto Jorge Krug (George Edward Krug, 1869-1939), viajou para Estados Unidos. Matriculada na Art Students League, não se adaptou ao ensino, que considerou muito apegado às representações realistas. Depois de alguns meses desistiu da escola, passando a frequentar apenas as oficinas de gravura.

Uma amiga lhe contou que um professor de pintura e grande filósofo incompreendido (palavras de Anita, na conferencia que apresentou, em 1951, na Pinacoteca do Estado de São Paulo) estava reunindo um grupo de alunos para passar uma temporada em uma ilha na costa do Maine.

Aluna de Homer Boss, Anita, que tinha 25 anos, passou o verão de 1915 na ilha de Monhegan (2,2 km² de extensão e, na época, com população inferior a uma centena de pessoas). Foi o período mais intenso, livre e transformador de sua vida (artística e social). A turma passava o dia pintando – enquanto houvesse luz natural. No período da noite (a ilha não tinha energia elétrica) conversavam, contavam histórias, dançavam. Aos sábados, era realizada uma pequena mostra de trabalhos, onde Homer Boss opinava e orientava os alunos. De certa forma, a Independent School of Art era uma representação do paraíso.

Na metade de 1916, Anita estava de volta a São Paulo, onde continuou pintando. Depois de visitar uma exposição da artista, José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948) fez uma declaração de guerra no jornal O Estado de São Paulo, com o artigo A Propósito da Exposição Malfatti (publicado em 20 de dezembro de 1917. Mais tarde esse texto recebeu outro título: Paranoia ou Mistificação). Nessa análise, Monteiro Lobato define as linhas básicas de uma luta que estava apenas começando.


Monteiro Lobato

A histeria, promovido por Monteiro Lobato, pode ser considerada como um dos momentos iniciais da grande revolução cultural brasileira, a Semana de Arte Moderna (13, 15 e 17 de fevereiro de 1922). O resto da história pode ser definido por esse embate entre modernistas e "passadistas", entre aqueles que queriam embalsamar o passado e os que estavam olhando para o futuro.

Não há provas de que Anita Malfatti e Edward Hopper (1882-1967) tenham se encontrado em algum instante, embora ela tenha conhecido, em Nova York, Marcel Duchamps, Máximo Gorki e Juan Gris, entre outras personalidades do mundo artístico mundial. O que os une é a pintura. Mais precisamente os quadros que produziram em Monhegan (Hopper esteve lá em várias ocasiões).


Edward Hopper

Hopper ficou célebre por enfatizar, de forma realista, a solidão contemporânea. Malfatti seguiu outro caminho. Depois que conseguiu superar o figurativismo, através de cores vibrantes e temas que quebram o estilo acadêmico clássico, introduziu uma nova perspectiva pictórica nas artes plásticas do Brasil (influenciada pela pintura de ruptura europeia – Pablo Picasso, Oscar Kokoschka, Gustav Klint, Fernand Léger, etc.).

Passados tantos anos, sem fazer comparações, pois os estilos dos dois pintores são inegavelmente diferentes (técnica, cores, pinceladas, olhares sobre a luz) e eles estiveram na ilha em momentos distintos, é interessante ver a maneira como pintaram uma das atrações de Monhegan, o farol – e do mesmo ângulo.


O Farol, de Anita Malfatti (1915).



The Lighthouse at Two Lights, de Edward Hopper (1929).


Obs: Existe outra pintura de Hopper tendo o farol como motivo temático, mas  a visão pictórica é outra.


Lighthouse Hill, de Edward Hopper (1927).


quarta-feira, 16 de julho de 2025

ANA CRISTINA CESAR: DEZ POEMAS

 



Lá onde cruzo com a modernidade, e meu pensamento passa como um raio, a pedra no caminho é o time que você tira de campo.

 

casablanca

Te acalma, minha loucura!

Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!

Esse som de serra de afiar as facas 

não chegará nem perto do meu canteiro de taquicardias...

Essas molas a gemer no quarto ao lado

Roberto Carlos a gemer nas curvas da Bahia

O cheiro inebriante dos cabelos na fila em frente no cinema...

As chaminés espumam pros meus olhos

As hélices do adeus despertam pros meus olhos

Os tamancos e os sinos me acordam depressa na madrugada 

feita de binóculos de gávea 

e chuveirinhos de bidê que escuto rígida nos lençóis de pano

 



Olho muito tempo o corpo de um poema

até perder de vista o que não seja corpo

e sentir separado dentre os dentes

um filete de sangue

nas gengivas

 

samba-canção

Tantos poemas que perdi.

Tantos que ouvi, de graça,

pelo telefone – tai,

eu fiz tudo pra você gostar,

fui mulher vulgar,

meia-bruxa, meia-fera,

risinho modernista

arranhado na garganta,

malandra, bicha,

bem viada, vândala,

talvez maquiavélica,

e um dia emburrei-me,

vali-me de mesuras

(era uma estratégia),

fiz comércio, avara,

embora um pouco burra,

porque inteligente me punha

logo rubra, ou ao contrário, cara

pálida que desconhece

o próprio cor-de-rosa,

e tantas fiz, talvez

querendo a glória, a outra

cena à luz de spots,

talvez apenas teu carinho,

mas tantas, tantas fiz...

 



Noite de Natal.

Estou bonita que é um desperdício.

Não sinto nada

Não sinto nada, mamãe

Esqueci

Menti de dia

Antigamente eu sabia escrever

Hoje beijo os pacientes na entrada e na saída

com desvelo técnico.

Freud e eu brigamos muito.

Irene no céu desmente: deixou de

trepar aos 45 anos

Entretanto sou moça

estreando um bico fino que anda feio,

pisa mais que deve,

me leva indesejável pra perto das

botas pretas

pudera

 

“nestas circunstancias o beija-flor vem sempre aos milhares”

Este é o quarto Augusto. Avisou que vinha. Lavei os sovacos e os pezinhos. Preparei o chá. Caso ele me cheirasse... ai que enjoo me dá o açúcar do desejo.

 

Inverno europeu

Daqui é mais difícil: país estrangeiro, onde o creme de leite é desconjunturado e a subjetividade se parece com um roubo inicial. Recomendo cautela. Não sou personagem do seu livro e nem que você queira não me recorta no horizonte teórico da década passada. Os militantes sensuais passam a bola: depressão legítima ou charme diante das mulheres inquietas que só elas? Manifesto: segura a bola; eu de conviva não digo nada e indiscretíssima descalço as luvas (no máximo), à direita de quem entra.   

 

mocidade independente

Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem medir as consequências. Por que recusamos ser proféticas? E que dialeto é esse para a pequena audiência de serão? Voei pra cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma graça atravessando o estado de São Paulo, de madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta contramão. 

 



Sem você bem que sou lago, montanha.

Penso num homem chamado Herberto.

Me deito a fumar debaixo da janela.

Respiro com vertigem. Rolo no colchão.

E sem bravata, coração, aumento o preço.

 

cabeceira

Intratável.

Não quero mais pôr poemas no papel

nem dar a conhecer minha ternura.

Faço ar de dura,

muito sóbria e dura,

não pergunto

“da sombra daquele beijo

que farei?”

É inútil

ficar à escuta

ou manobrar a lupa

da adivinhação.

Dito isso

o livro de cabeceira cai no chão.

Tua mão que desliza

distraidamente?

sobre a minha mão

 

 


Ana Cristina Cruz Cesar (1952-1983): poeta, crítica literária, tradutora, professora. Fez parte da Geração Mimeógrafo – também chamada de Poesia Marginal (década de 1970). Sua poesia caracteriza-se pelo tom confessional misturado com referências literárias.


sexta-feira, 11 de julho de 2025

UMA NOITE DE VERÃO

 


Você sabe por que as boas histórias sempre precisam acabar mal? Philippe Besson, escritor e personagem, no início do romance autobiográfico Uma Noite de Verão, escolheu antecipar que está narrando uma história com final complicado. É uma estratégia simples: propõe o problema, provoca a curiosidade. Será que o leitor vai aceitar a provocação e tentar descobrir o que aconteceu?

Foi no verão de 1985, em Sablanceaux (Île de Ré, Commune de Rivedoux-Plage, oeste de França). Os seis amigos (Philippe, François, Christophe, Nicolas, Marc e Alice) estão na faixa dos 18 anos e querem viver com a intensidade que a idade e os hormônios exigem. O desejo adeja ao redor de todos, apesar das interdições sociais. Alguns desses jovens oscilam sobre o que querem e porque querem. Quando decidem, nem sempre encontram correspondência.

(Nessa fase de nossas vidas, estávamos presos em uma contradição fundamental: queríamos seduzir, viver romances, éramos guiados por nossa inexperiente libido, mas, na maioria das vezes, ficávamos na incerteza, no meio-termo, numa espécie de zona cinzenta, faltava-nos determinação, discernimento ou energia, ou os três ao mesmo tempo e, no fim, muitas vezes preferíamos a companhia dos amigos ao amor e ao sexo, era menos complicado, menos exaustivo.)

Como essas questões (não importa qual caminho seja o escolhido) possuem horizontes distantes, os protagonistas do romance, aos poucos, vão descobrindo que ninguém é inocente e que até as amizades que pareciam sólidas podem ser rompidas a qualquer instante. Mas, não é somente isso: a narrativa, embora em primeira pessoa, está centrada na figura de Nicolas – um indivíduo sensível, escorregadio, que foge de qualquer tipo de envolvimento afetivo (Alice tem uma explicação: “Ele é misterioso, não fala muito, quando você é assim, pode esconder qualquer coisa dos amigos”.). É esse caráter enigmático que produz tensões, desloca os olhares, e, simultaneamente, provoca paixões e ciúmes (principalmente em François, que deseja conquistar Alice).

A grande reviravolta do enredo ocorre na noite de 19 de julho, sexta-feira, aniversário de Christophe. Os seis amigos vão a uma boate em Saint-Martin-de-Ré. Em determinado momento, Philippe percebe que Nicolas desapareceu. Ninguém o viu, ninguém sabe aonde ele foi. Todos estão muito bêbados ou excitados para procurar por alguém que pode estar se escondendo ou que talvez tenha voltado para Sablanceaux mais cedo.

No dia seguinte, depois que constatar que Nicolas não está em casa e que não deu nenhuma notícia, a engrenagem da procura é acionada. E ninguém o localiza, nem mesmo a polícia. Volatilizou-se. Nenhuma pista, nenhuma ideia sobre o seu paradeiro. A possibilidade de que possa ter se afogado no mar não é descartada, mas o corpo não aparece (A hipótese que ninguém ousa retomar é a da morte voluntária. Ninguém se mata aos dezessete anos. Né?). Mas, para quem prestou atenção, em dado momento, vários dias antes, Nicolas proferiu uma declaração estranha, premonitória: Ele diz, como se fosse uma verdade universal: “A gente não vai embora para ir a algum lugar ou fazer algo. A gente vai embora, ponto.” Na medida que o tempo passa e as buscas não resultam em uma resposta, a desolação se faz presente: Sei apenas que a ausência de Nicolas se tornou ainda mais concreta. Ela era um desvanecimento. Agora é um apagamento.

Nicolas desapareceu – de uma forma ou de outra. O que sobrou está expresso nas palavras de Philippe, alguém que nunca conseguiu entender os acontecimentos daquele verão – e que, para exorcizar os fantasmas, escreve: A verdade, se quiser saber, é que nunca consegui me livrar dessa história, ela nunca saiu de mim, ela segue aqui, em algum lugar, perdida nos recessos da memória, e volta à tona de tempos em tempos.


Philipe Besson

PS: No Brasil foram publicados os seguintes romances de Philippe Besson: Na Ausência dos Homens (Rocco, 2007), Mentiras que Contamos (Austral Cultural, 2024), Muito mais que um Crime (Vestígio, 2024), Uma Noite de Verão (Vestígio, 2025).


quinta-feira, 10 de julho de 2025

A OBRA LITERÁRIA E O ESCRITOR (texto modificado)

 

Cena do filme Première Année (Primeiro Ano), dirigido por Thomas Lilti, 2018. 

Em literatura, é pecado indesculpável misturar a obra literária e o escritor. Queria escrever autor, mas diversos teóricos (Roland Barthes e Michel Foucault iniciaram a confusão) sentiram prazer em matar o autor, então... (e, para não tumultuar o meio de campo, devemos deixar essa discussão para depois). De qualquer forma, o que precisa ficar claro é que a figura física daquele que escreve não pode (ou não deve) ser comparada com o texto publicado.

Explico. Ezra Pound, Louis-Ferdinand Céline e Pierre Drieu de La Rochelle eram fascistas. No entanto, escreveram romances e estudos teóricos de importância fundamental para a literatura. Recusar, ou melhor, cancelar esses trabalhos significa ignorar que o(a) escritor(a) é, em primeira instância, um ser humano – portanto, passível de deslizes éticos e morais. Decretar juízo de valor sobre a história pessoal do(a) sujeito(a) constitui um rebaixamento inapropriado, pois quer medir a qualidade literária com a régua do politicamente correto.     

William Burroughs matou a esposa acidentalmente – o filósofo Louis Althusser também fez isso; Ernest Hemingway (Prêmio Nobel de Literatura, 1954) e Charles Bukowski, além de alcoólatras, eram machistas; Vidiadhar Surajprasad Naipaul (Prêmio Nobel de Literatura, 2001) era uma pessoa detestável sob diversos aspectos; Dostoiévski, além de alcoólatra, tinha problemas com jogos de cartas e roleta; Monteiro Lobato era racista; O Marquês de Sade era maníaco sexual; Philip K. Dick sofria de esquizofrenia; James Joyce costumava pedir dinheiro emprestado e nunca devolvia; Anne Sexton, Sylvia Plath, Virgínia Woolf e Alejandra Pizarnik eram depressivas e se suicidaram; Jack Kerouac era viciado em anfetaminas; a inimizade entre os irmãos Heinrich e Thomas Mann (Prêmio Nobel de Literatura, 1929), Lawrence e Gerald Durrell ultrapassava as fronteiras do bom comportamento.

A lista dos(as) escritores(as) “defeituosos” se prolonga na direção do infinito. Mas nenhum desses desvios de conduta desmerece o trabalho literário. Deixar de ler um livro por qualquer motivo que não seja as deficiências do próprio livro constitui um sacrilégio e uma prova cabal de miséria intelectual.

As áreas que podem determinar a qualidade de um texto são, em última instância, a crítica literária e o gosto pessoal. Ao lado dos critérios técnicos (que podem estabelecer um grau de avaliação para os inúmeros elementos que compõem a obra), as preferências do leitor ajudam a determinar se uma narrativa deve ou não integrar o cânone. Mas todos esses instrumentos de análise são subjetivos e podem ser contestados a qualquer momento. A literatura não quer estabelecer algum tipo de ordem definitiva (melhor ou pior) ou garantir que o leitor não terá decepções; o que ela almeja é o constante diálogo entre o(s) livro(s) e o(s) leitor(es). Disso deve resultar a fruição do texto. Elementos externos, como curiosidades, histórias paralelas e a vida pessoal do(a) escritor(a), não representam um acréscimo ou um demérito na produção literária.

O leitor se apaixona pelo livro – o escritor é apenas um instrumento dessa ação.

 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

O ABISMO E A LITERATURA

 


Algumas vezes o imaginário produz confusões. Jane Austen se mistura com Paul Auster, Alan Pauls com Rodrigo de Paul, Paul Theroux com Paul Thomas Anderson, Sherwood Anderson com Hans Christian Andersen, Joachim Andersen com Joachim Trier, Lars von Trier com Lars Ulrich, e as associações são infinitas, não se esgotam nesse pensamento embaralhado por literatura, futebol, música e cinema. Tudo parece estar – ao mesmo tempo – ao nosso lado e em uma galáxia distante. Em algumas ocasiões, pelos mais estranhos motivos, perdemos o contato com os fatos objetivos e não conseguimos saber quem é quem nessa história e em que mundos se movimentam. Ou melhor, em que mundos nós (os leitores, os espectadores, os jogadores, os músicos,  os cineastas) nos movimentamos. E, não menos importante, se estamos nos deslocando em alguma direção. Provavelmente (sem ter qualquer tipo de certeza) é o imobilismo que nos faz ficar contemplando a paisagem. Somos voyeurs de nossas próprias obsessões.

Nessa crise de identidade, vale recordar um dos romances mais divertidos de Mario Vargas Llosa: Tia Júlia e o Escrivinhador (publicado em 1977). Em determinado momento, o dramaturgo radiofônico Pedro Camacho perde a lucidez e começa a misturar os enredos e os personagens das diferentes novelas que está escrevendo e que são transmitidas diariamente pela Rádio Central. As intrigas descritas na narrativa A, em um visível rompimento da racionalidade, começam a aparecer na novela B; o personagem que foi morto na história C aparece lépido e faceiro na trama D.

A combinação de diversos ingredientes no liquidificador literário produz o inesperado, o absurdo e o estranhamento, sem abdicar de incontáveis clichês românticos e realistas. Ou seja, a quebra da lógica narrativa produz outras histórias, completamente diferentes daquelas que haviam sido propostas inicialmente. Literariamente, tudo é possível – inclusive perder o contato com aquilo que o senso comum chama de realidade (ver A Corneta, de Leonora Carrington).

Alguns leitores possuem o hábito de ler vários livros de ficção simultaneamente. Talvez não tenham consciência dos riscos. O principal é perder o fio da meada. Por exemplo, alguém pode encontrar Diadorim (Grandes Sertões: Veredas, Guimarães Rosa) em um trisal com os gêmeos Yakub e Omar (Dois Irmãos, Milton Hatoum) ou então descobrir que Paulo Honório (São Bernardo, Graciliano Ramos) viajou para Pasárgada (Manuel Bandeira) para assistir o enterro de Escobar (Dom Casmurro, Machado de Assis).

Esse tipo de fantasia assusta – e, também, excita. A ficção especulativa (imaginar o que poderia acontecer se os ventos ou os deuses escolhessem outra direção) acena com o rompimento das barreiras mais elementares. Basta lembrar, entre outros textos complicados, Complô contra a América (Philip Roth), O Homem do Castelo Alto (Philip K. Dick) ou Back in the USSR (Fábio Fernandes). Universos alternativos se sucedem em cascata, propondo visões que ultrapassam o plausível. A base desse tipo de construção literária está no pacto ficcional (a verdade existe apenas dentro da narrativa). Nada se desmancha na imaginação do leitor – o que está sendo relatado adquire (enquanto durar a leitura) o status de verossímil.

A loucura está em outro departamento. É isso que nos contam Maura Lopes Cançado em Hospício é Deus ou Afonso Henriques de Lima Barreto em Diário do Hospício. Não são imagens agradáveis ou lúdicas. Ao contrário, mostram faces do humano que não gostaríamos de ver. Nessa rota de colisão torna-se compreensível (embora indesculpável) que muitas pessoas procurem se afastar da parede que separa a lucidez da instabilidade mental (a voz de Ana Cristina Cesar ecoando no horizonte: Te acalma, minha loucura!).

O abismo se apresenta a todo instante. Resta decidir (se isso for possível) por uma das duas alternativas: seguir em frente ou se afastar.


sexta-feira, 13 de junho de 2025

MEUS ANJOS DA GUARDA E OS INIMIGOS DA RAZÃO

 

El sueño de la razón produce monstruos.
Gravura 43 de uma série de 80. Museu de Prado, Madrid.
Francisco José de Goya y Lucientes (1746 - 1828)
                                                    

Toda vez que preciso de alguma ajuda ou referência, consulto os meus anjos da guarda de estimação: Michel de Montaigne (1533-1592), Walter Benjamin (1892-1940), György Lukacs (1885-1971), Roland Barthes (1915-1980), Edward Said (1935-2003), Susan Sontag (1933-2004) e George Steiner (1929-2020). Eles nunca ignoram as minhas preces.

Evidentemente, nem sempre os acontecimentos transcorrem com a necessária delicadeza que envolve a relação entre mestre e aluno. Como todo indisciplinado, que nega a dinâmica da vassalagem, conjugo turbulências, discordâncias e, da forma mais nítida possível, dúvidas. Não é o comportamento que faria sucesso nos salões literários de Paris do século XVII. Ou nas reuniões políticas contemporâneas. Não por acaso, em determinado período de minha vida, a long time ago in a galaxy far, far away, fui rotulado de inorgânico, uma subcategoria política derivada do pensamento de Antonio Gramsci (1891-1937). Provavelmente foi o melhor elogio que recebi em toda a minha vida.

Acredito que a literatura, em particular, e as discussões intelectuais, de forma geral, implicam em exercícios de inquietude. E isso resulta, principalmente, no debate incessante – não como uma forma ininterrupta de negação, mas como um exercício do método dialético. Uma aposta de que a potência se revelará através do choque entre as ideias – ou na exaustão. O que vier primeiro.

Foi no exercício do embate entre um conceito e sua antítese que aprendi que o discurso amoroso precisa resultar em fruição, prazer e/ou gozo. Contrário à esterilidade, entendo que a ação que movimenta o diálogo precisa provocar rumores e humores, tempestades e desconforto. Há quem discorde, o que é saudável, pois, na interpretação de um dos grandes sociólogos do século XX, Nelson Rodrigues (1912-1980), toda unanimidade é burra.

A linguagem deve se projetar no espaço social como instrumento de luta. Somente aqueles que mergulham nas entranhas das palavras e emergem da malha composta por fios conflitantes podem projetar a construção de argumentos coerentes – mas que, necessariamente, como se fosse uma casa de vidro, devem ser transparentes. Sem esse requisito será apenas mais um aparelhamento ideológico a serviço de quem está no poder. A política e o mal (seja lá o que isso for) muitas vezes se irmanam – para poder oprimir com maior intensidade.

Pensar está em oposição ao silêncio, à negação e ao compactuar com o inimigo (que precisa ser bem definido, sob o risco de gerar algum tipo de confusão entre miragens e falsos profetas, fantasmas e deslumbramentos). Por isso, independente da força das tropas inimigas, cabe denunciar – ininterruptamente – a violência e o arbítrio. Compactuar significa rendição. Por maior que possa parecer o vendaval de inspiração fascista, urge combater os intolerantes e expor as verdades desagradáveis. Somente assim será possível sobreviver à nova Idade Média que está se desenhando no horizonte.

Cercado pelos textos daqueles com quem converso frequentemente, acredito que não será somente com livros e ideias que encontrarei a felicidade. Ou a facilidade. Aquele que sonha de olhos abertos – como convém aos céticos – sabe que, na estrada que leva ao esclarecimento, existem muitas pedras, perigos, monstros e inimigos da razão.

 


segunda-feira, 9 de junho de 2025

MARCEL PROUST E KARL OVE KNAUSGÅRD

 

Valentin Louis George Eugène Marcel Proust


Tenho medo de Marcel Proust (1871-1922) e Karl Ove Knausgård (n. 1968). São escritores que, ao estabelecerem ligações com o passado, escreveram vários livros com 500, 600 páginas. Nesses formidáveis exercícios memorialísticos declaram a concisão como um ato inútil. As frases se estendem na direção ao infinito, umas emendadas nas outras por essas pontes que são as vírgulas, os pontos e vírgulas, os travessões. O pensamento fica flutuando, feito nuvem que invade o azul, reverberações de uma literatura que se projeta no espaço, elimina o tempo cronológico e desconstrói tudo o que era considerado como certeza.

São escritores que forjam o novo a partir das ruínas. Nem tudo é verdade. Nem tudo é mentira. Nem tudo é ficção. Também não oferecem solução para os problemas do mundo. Nos seus livros, o autor e os personagens estão fundidos em oração profana, um aceno aos deuses pagãos. Não há lugar para o convencional. Cabe ao leitor que se arrisca nessa viagem aceitar que está pisando em areia movediça e que a qualquer descuido pode acontecer o inesperado – inclusive o tédio total.

Em A Procura do Tempo Perdido (À la recherche du temps perdu, sete volumes) e Minha Luta (Min kamp, seis volumes), as páginas estão inundadas por tinta e sentimentos diversos, um turbilhão muitas vezes inconciliável, mistura de dor e alegria. A verborragia insinua que o inesgotável que compõem essas narrativas tenta se aproximar do real – mas que, talvez por isso mesmo, se afastam do objetivo pretendido. São tempestades de palavras alimentando um deserto sem fim. São uma espécie de jogo, cartas distribuídas aleatoriamente, blefes a todo instante – confirmando que a literatura é trapaça, truques para apresentar no picadeiro do circo humano (o trapézio é a distância entre o voo e a queda).

A volúpia pelo fluído, difuso, amorfo, líquido ou qualquer outro substantivo (o esforço inútil de inventar palavras ou conceitos capazes de expressar uma folha flutuando no vento constrói algo que ainda não tem nome) se revela no momento em que as palavras escorrem pela constelação de frases, parágrafos, páginas, volumes e vai se espalhando pelo campo de visão do leitor, metamorfose das imagens.

Proust – conta a lenda – diante das provas tipográficas para correção dos seus livros, em lugar de procurar por erros ou fazer as mudanças necessárias ignorava a tarefa e incluía outras centenas de palavras, as frases amalgamadas entre as linhas, uma necessidade incontrolável de incluir mais e mais. Entendia que a narrativa estava incompleta, ou melhor, ainda está incompleta, sempre há a possibilidade de acrescentar mais algum trecho, a imaginação não possui limites.

Knausgård ignora a economia narrativa e, através das histórias familiares, produz reflexões sobre a fragilidade humana. Quer diluir as fronteiras entre a memória e a invenção, como se fosse possível recuperar o que acredita ter se perdido nas histórias pessoais que (não) se realizaram. Sonhos não envelhecem e, em tom desafinado, voltam à tona, pronunciando abracadabras que pareciam esquecidas.

Na leitura dos livros de Proust e Knausgård voltar um capítulo ou dois se faz necessário a todo instante, inevitável que algum sentido ou direção escape, fios soltos na tessitura orgânica do texto, o leitor como garimpeiro de símbolos, significados e significantes, a algaravia construindo a Torre de Babel e mandando o bom senso para o beleléu. 

Ao leitor com interesse por histórias mornas, normais, formais, recomenda-se passar longe – é o que Proust e Knausgård dizem em cada palavra do que escreveram.   

Karl Ove Knausgård