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quarta-feira, 25 de outubro de 2023

CELSO AURÉLIO

 


A notícia do falecimento de Celso Aurélio Arruda Branco, no dia 24 de novembro, encerra parte da história do jornalismo esportivo do Planalto Catarinense. Ele era presença obrigatória em quase todos os eventos do esporte amador regional e nunca perdeu a oportunidade de incentivar as mais diversas modalidades esportivas (e os atletas que se destacavam) nos veículos de comunicação em que trabalhou. Ciente de que esse trabalho de “formiguinha” nem sempre oferece resultados satisfatórios, e que a caminhada está repleta de obstáculos, nunca desistiu. Cada dificuldade era um incentivo para continuar.

Como o viver está composto por fragmentos (que vivenciamos ou que imaginamos ter acontecido), Celso Aurélio está presente em dois episódios que lembrei ao tomar ciência de que ele desencarnou (os espiritas não aceitam o fenômeno físico-químico de dissolução pura e simples da matéria orgânica – acreditam que existe outro mundo e que a morte é apenas uma passagem entre um estágio e o outro).

Esse dois momentos (que estão interligados) não ajudam a compor um perfil bibliográfico, mas fornecem substância a um desses personagens que compõem o cotidiano urbano (e que raramente são percebidos como significativos para o pulsar da aldeia).

Na segunda metade dos anos 80 e início dos 90 costumávamos frequentar o Bar Marrocos, gerenciado pelo Heitor. A turma usualmente costumava ocupar a mesa quatro, que permitia uma boa visão do calçadão. Esporadicamente, Celso Aurélio se unia a aquele bando de professores, advogados, escritores e artistas plásticos. Com calma, fazia o pedido:

– Seu Heitor, por favor, um guaraná do tipo champanhe.

Enquanto nós, muitas vezes com um tom de voz pouco civilizado, queríamos salvar o mundo das inúmeras ameaças (reais, simbólicas ou imaginárias), Celso Aurélio bebericava o refrigerante da Antarctica com o dedo mindinho erguido, talvez imaginando participar de algum grande evento social.

O tempo escorreu pelo vão dos dedos. O Marrocos deixou de existir. Muitas daquelas pessoas que presenciaram a cena sumiram nas dobras do tempo. Celso Aurélio continuou trabalhando com o esporte, seja escrevendo para o Correio Lageano (depois em O Momento) ou participando de programas de rádio. Em algum momento, alguém comentou que ele estava doente. Ao encontrá-lo, perguntei sobre isso. Ele respondeu que tudo estava sobre controle e que não queria se preocupar com algo sem importância. Mudei rapidamente de assunto.

Cerca de um ano atrás, em um desses momentos de jogar conversa fora, ele me disse algo que não estava no script:

– Não sei como não virei comunista!

Sem saber ao que ele estava se referindo, pedi uma explicação. A resposta veio rápida, como se estivesse sido elaborada de antemão:

– Lembra aquele tempo em que frequentávamos o Marroquinho? Então, vocês ficavam discutindo aquelas coisas estranhas (luta de classe, mais-valia, colonialismo) e eu, silenciosamente, me perguntava se aquilo estava certo. O tempo fez com que a gente tomasse caminhos diferentes e foi isso que me salvou do comunismo.

Rir foi inevitável. A ingenuidade sempre causa espanto. Principalmente depois de o Brasil ter superado uma grande crise institucional. Expliquei que, embora alguns sobreviventes daquele grupo mostrem simpatia por posições políticas de esquerda, todos são capitalistas (uns mais, outros menos). Não sei se ele acreditou nisso, inclusive porque a conversa tomou outro rumo. 

É isso. Celso Aurélio fará falta. Muita.  


terça-feira, 10 de outubro de 2023

SOBRE O PRÊMIO NOBEL DE 2023

 


Os professores da Universidade da Pensilvânia, que trabalham com o RNA mensageiro (mRNA), Katalin Karikó e Drew Weissman ganharam o Prêmio Nobel de Medicina em 2023. A pesquisa coordenada pelos dois cientistas contribuiu para que as empresas farmacêuticas Pfizer e Moderna desenvolvessem uma vacina contra o Covid-19.

No romance especulativo O Fim dos Homens (Verus Editora, 2022), escrito por Christina Sweeney-Baird, acontece algo particularmente interessante e que, de certa forma, antecipa os acontecimentos que envolvem Karikó e Weissman.

No texto, o mundo precisa enfrentar uma epidemia que somente afeta a população masculina. Por se tratar de uma doença em que as mulheres estão imunizadas, cabe-lhes o protagonismo na tentativa de descobrir quem foi o paciente zero (aquele que iniciou a transmissão do vírus) e, consequentemente, como a doença se espalhou. Em paralelo, há o esforço farmacológico para criar um antídoto.

Os fatos narrativos ocorrem em 2025 e são descritos em ritmo de thriller. Além do suspense, o livro apresenta inúmera características: capítulos curtos, narradores múltiplos, notícias jornalísticas, plot twist e personagens de caráter duvidoso. São ingredientes que garante a fluidez da leitura e asseguram o interesse do leitor. Além disso, temas como o feminismo e o cuidado com as questões ecológicas são estrategicamente discutidos em cada uma das páginas do livro.

O paralelo com a realidade se apresenta em uma das cenas finais do romance, quando três dos personagens (Elizabeth “Lisa” Michael, Amaya Sharvani e George Kitchen), que estavam trabalhando para encontrar uma solução para o problema, dividem o Prêmio Nobel de Medicina. Algum leitor ingênuo provavelmente dirá que esta é uma daquelas situações em que a arte antecipa a vida ou que a arte imita a vida. E (quase) ninguém o vai censurar, porque impressiona saber que o mundo está à mercê de doenças e de catástrofes que ninguém possui imaginação para prever – principalmente quando se considera que a modernidade nos garante que “tudo” está sobre controle. Essa arrogância implica em negar a necessidade de medidas preventivas. Ao somente se preocuparem com os avanços tecnológicos, os cientistas (e os capitalistas) esquecem que a natureza também está em transformação – e que nem sempre resulta em benefício humano.

Depois que a epopeia literária termina e o vírus foi debelado, a possibilidade de extinção da humanidade deixou de existir. Mas, todos sabem que – mais cedo ou mais tarde – outra ameaça surgirá. E, quando isso acontecer, todos os seres vivos do planeta estarão em perigo.

Entre os livros que abordam doenças epidêmicas (como A Peste, de Albert Camus, O Enigma de Andrômeda, de Michael Crichton, e Estação Onze, de Emily St. John Mandel), ressalte-se que O Fim dos Homens não obteve significativo destaque no mundo literário. Talvez porque não acrescente muita coisa aos elementos que aborda, exceto a diversão (o que não é pouco).

     


P.S.: Sobre o norueguês Jon Olav Fosse, que ganhou o Nobel de Literatura, nada sei. Nunca li nada do que ele escreveu. Aliás, da literatura da Noruega só conheço (salvo engano) um pouco do teatro escrito pelo Henrik Ibsen, dois romances do Knut Hamsun (Fome e Um Vagabundo Toca em Surdina) e o primeiro volume da hexalogia do Karl Ove Knausgård (A Morte do Pai).


terça-feira, 3 de outubro de 2023

SEMPRE SUSAN


Sei como é quando você admira alguém e então o vê sob uma luz nada lisonjeira. Sei que pode ser muito doloroso. Foi isso o que Susan Sontag (1933-2004) disse para Sigrid Nunez, logo depois que Edward Said (1935-2003) foi embora (ele estava visitando Sontag e tinha sido professor de Sigrid na Universidade de Columbia). A citação, como se fosse um bumerangue que retorna ao local de lançamento, também serve para identificar a autora do comentário.  

Sempre Susan (Sao Paulo: Editora Instante, 2023), o livro testemunho de Sigrid Nunez, mostra uma imagem pouco lisonjeira da mulher que é considerada uma das mais importantes intelectuais estadunidenses. Sigrid, que trabalhou como assistente de Sontag e depois foi namorada de David Rieff (filho de Sontag), não poupa a escritora (principalmente na parte final do livro). Ignorando a possibilidade de escrever uma hagiografia, Sigrid revela defeitos, mágoas, ressentimentos e o complicado complexo de Édipo/Jocasta que uniu Susan e David – provavelmente, embora não o diga explicitamente, o motivo pelo qual Sigrid e David romperam.

No entanto, há um atenuante. Como se trata de um texto situado cronologicamente em um tempo limitado (um ano e pouco, além de alguns encontros esporádicos), e que foi escrito depois da morte de Sontag, pode estar carregado por rancores que não são exatamente os desejáveis em alguém que esteve tão próxima. De qualquer forma, o relacionamento entre os três personagens (Susan, David, Sigrid) parece estar fechado em uma redoma. Salvo Joseph Brodsky e Maria Inês Fornés (que são citados de forma rápida), as outras pessoas que aparecem na narrativa são “figuras decorativas” – qualquer nome poderia ser substituído por outro sem prejuízo do que esta sendo contado, embora exista um cuidado para que a escrita esteja conectada com a verossimilhança.

Por algum motivo, Sigrid menciona o câncer no seio de Sontag de forma superficial. Mas não esconde que esse episódio foi o impulso para que um dos grandes textos de Sontag, A doença como metáfora (São Paulo: Graal, 1984), fosse escrito. Algum tempo depois, Sigrid precisou ler o manuscrito de Aids e suas metáforas (São Paulo: Companhia das Letras, 1989), porque Susan queria saber a sua opinião naquele instante – e não depois do jantar. Sontag tinha certas necessidades – que não podiam esperar.

Sobre a literatura de Sontag, Sigrid destaca O amante do vulcão (São Paulo: Companhia das Letras, 1993) e o conto Assim vivemos agora (São Paulo: Companhia das Letras, 1995). Mas, no geral considera os ensaios como brilhantes e os romances, difíceis. A isso acrescentou o fracasso das leituras públicas. O público esperava pela leitura de algum ensaio e Susan preferia um conto (que eram longos e pouco atraentes em um evento público), ratificando o pensamento que costumava repetir em particular e em público: ela era uma escritora de ficção que por acaso escrevia ensaios, e não o contrário. No entanto, o seu sucesso está mais relacionado com a produção ensaística do que com a literatura de ficção.

Depois que se separou de David Rieff, Sigrid Nunes se encontrou com Sontag poucas vezes, embora tenha acompanhado sua trajetória à distância. Quão difícil é se afastar das pessoas que amamos: Sentamos juntas por um tempo, fumando e conversando. Quantas horas passávamos assim, fumando e conversando! Para mim era insondável: a pessoa mais ocupada e produtiva que eu conhecia, a qual, de alguma forma, sempre tinha tempo para uma longa conversa.


sexta-feira, 22 de setembro de 2023

A NOITE DAS BRUXAS

 


Em que momento foi possível reunir William Shakespeare e Agatha Christie? Embora isso pareça improvável, a triste resposta está em alguns dos filmes do inglês Kenneth Branagh. Mas não se trata de um episódio isolado. O crime já foi cometido três vezes. E, se o sujeito (que, atualmente, salvo engano, está com 62 anos) tiver vida longa, e ninguém o impedir, provavelmente filmará, no mínimo, outras três versões pavorosas dos livros de uma das principais escritoras para leitores adolescentes.

Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express, 2017), Morte no Nilo (Death on the Nile, 2022) e A Noite das Bruxas (Haunting in Venice, 2023) estão inscritos na ficha corrida do Kenneth Branagh. Assisti os três no cinema (porque a conexão com alguns filmes só se estabelece na tela grande). Infelizmente, a decepção se fez presente em todos os momentos. A tentativa grandiloquente de transformar Hercule Poirot em algo que foge da imagem que projetamos do personagem literário lembra o maneirismo teatral – e que, obviamente, é incompatível com a estética cinematográfica. Talvez Kenneth Branagh ainda esteja contaminado pelas versões de clássicos shakespearianos que interpretou e/ou dirigiu: Henry V, Much Ado About Nothing, Looking for Richard, Othello, entre outros. Talvez seja a hora dele se livrar desses fantasmas, abrir as janelas do castelo e deixar o sol entrar.  

A Noite das Bruxas beira o patético porque é, antes de tudo, uma narrativa de mistério. Mistério gótico, mas ainda assim mistério. Infelizmente, Branagh se desviou desse caminho e, usando de alguns truques teatrais, empurrou a narrativa na perigosa direção do terror clássico. Para que isso se concretizasse não economizou no uso de alguns elementos de carpintaria cênica. Por exemplo, os efeitos sonoros (gritos do pássaro, xícaras que caem, telefone que toca em momento complicado). Soma-se a isso o cenário: um pallazzo em Veneza, halloween, uma noite de tempestade, muito vento, o barulho das ondas, a angústia crescente. Assustar o espectador parece ser o propósito – e o filme apenas um pretexto.

A alta voltagem narrativa desvia a atenção da trama de tal forma que, quando é anunciada a solução dos crimes (que ocorre da forma mais rápida possível), ninguém tem tempo para reagir. O brilhantismo do detetive que tudo observa e, por dedução aritmética, vai encaixando o quebra-cabeça desaparece em uma nuvem de tensões que somente estão em cena para confundir o espectador (supondo que ninguém tenha lido o texto original). O único momento razoável surge em uma das últimas cenas, quando Poirot confronta o menino e esclarece o detalhe que serviu de gatilho para as três mortes.

É pouco, muito pouco. Inclusive porque a interpretação de Kenneth Branagh aterroriza. Hercule Poirot parece ser um boneco de pano fazendo pose e dizendo as suas falas de forma compulsiva, como se tudo fosse fruto de uma obrigação. Em sentido oposto, o detetive se transforma em uma marionete – que é manipulada pela escritora Ariadne Oliver (interpretada por Tina Fey).

Em A Noite das Bruxas, além de beirar o artificialismo, tudo parece estar fora do lugar. E o filme deve ter o destino reservado às outras duas adaptações dos livros de Agatha Christie feitas por Branagh: o esquecimento. Shakespeare agradecerá. Quem gosta de cinema e de literatura policial, também. 


terça-feira, 12 de setembro de 2023

VÁ PARA.... AQUELE LUGAR!

 


Nos últimos anos, seja em conversas amenas, seja em discussões ásperas, muitas pessoas me recomendaram ir para aquele lugar. A ideia era me mandar para outro destino. Muito pior. Todo mundo sabe qual. No entanto, a educação inglesa das classes econômicas superiores aconselha o uso de moderação e de eufemismos. Então, adotando uma forma quase suave de estabelecer quem estava de lado de quem, citavam (como se estivessem mastigando o ódio) o nome do país que imaginavam ser uma espécie de inferno terrestre. Um conhecido, no auge da histeria, sugeriu várias vezes pagar a passagem. Somente a ida. Aceitei. Ele não honrou a promessa. Nenhuma novidade.  

No início do mês de agosto, por um desses acasos que a vida nos presenteia, fui para Cuba. E, para desagrado geral, voltei. Cansado. E ciente de que fiz uma excelente viagem, conheci gente interessante, comi como um frade franciscano (de onde tirei isso?), bebi hectolitros de mojito, daiquiri, cerveja e limonada. Trouxe, na bagagem, alguns livros, uma sandália nova e várias histórias. Ah, antes que me esqueça, também comprei uma caixa de charutos. Como não fumo, compartilhei o tabaco entre amigos e inimigos. Foi uma forma de dizer para todos que, apesar dos pesares, a vida continua sendo um prazer inenarrável (como diria outro conhecido).

O calor de Cuba enlouquece os turistas – em vários sentidos. As pessoas que conhecemos eram todas calorosas, amistosas (mesmo aquelas que queriam vender alguma coisa – e todos pareciam ter vocação para fazer algum tipo de negócio). Para desespero dos que estão “do outro lado”, nos cinco dias que passei pela ilha, ninguém tentou me envelopar em questões políticas. Fiquei com a impressão que passei impune, se é que a ilha está envolta por algum tipo de tentação política indecorosa.  Provavelmente fui imunizado pela vacina contra a febre amarela.

Leitor da alguns escritores cubanos – Nicolás Cristóbal Guillén Batista (1902-1989), Alejo Carpentier y Valmont (1904-1980), José Lezama Lima (1910-1976), Virgílio Piñera Llera (1912-1979), Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), Pedro Juan Gutiérrez (n. 1950), Leonardo Padura Fuentes (n.1955), entre outros – foi nas ruas de Habana Vieja que entendi a alegria que move os habitantes da ilha. Em qualquer bar, ou nas ruas, os ritmos caribenhos se misturam com o jazz e a música brasileira (adoram Djavan!!). Algumas vezes, a necessidade de contornar as altas temperaturas nos atraia para dentro de locais onde grupos musicais, ventiladores e cerveja (quase todas espanholas) constituíam o necessário refresco para quem queria continuar o passeio. E sempre era bom e trazia contentamento e conforto e felicidade.



Antes de viajar, um dos objetivos traçados era visitar La Bodeguita del Medio (Calle Empedrado), o bar/restaurante preferido de Ernest Miller Hemingway (1899-1961), que viveu na ilha por muitos anos. Um de seus livros mais famosos, O velho e o mar, foi escrito na Finca Vigia, propriedade localizada a 15 km de La Habana, e inspirado na história de Santiago, um pescador cubano. La Bodeguita é um lugar peculiar e qualquer tentativa de descrever o ambiente parecerá insuficiente. Lá comi excelente pescado, bebi mojitos (conta a lenda que Hemingway inventou a bebida naquele lugar), olhei as centenas de fotografias de personalidades que estão penduradas nas paredes, devorei “helados”.



Outro lugar de que guardei boas recordações foi o bar/restaurante Dos Hermanos, perto do Mercado San Francisco (Avenida del Puerto). O garçom me contou a história do estabelecimento (que remonta ao fim do século XIX e se chamava originalmente Two Brothers). Também relatou como Hemingway se tornou amigo de Santiago. Lá bebi os melhores mojitos de Cuba – um alívio para o calor, um contentamento para o corpo. 

Depois de La Habana, fomos para Varadero – mas isso é outra história e o que lá aconteceu tentarei contar em outro dia.