Fescenino, fez−se menino. Um escritor maldito? Uma mente conturbada? Um gênio do mal? Um auto exilado? Um exilado alto? Um sir humano apaixonado. Essas são algumas das palavras que o Millôr Fernandes usou para descrever Ivan Lessa, naquela antologia organizada pelo Diego Mainardi, comprovando que − depois de tudo terminado – balaios de elogios serão insuficientes ao tentar escrever necrológio, o corpo ainda quente se transformando em alimento para os vermes excitados com a possibilidade de deglutir um bom pedaço do cadáver do velho – mas não muito – escritor.
No intervalo entre 1935 e 2012, bem−vividos, bem−divertidos 77 anos de vida, Ivan Lessa, ilustre filho de Orígenes Lessa (O Feijão e o Sonho), morto em virtude de um enfisema pulmonar no dia 08 de junho, inverno aqui, verão (ou inferno) lá, detestou amorosamente o Bananão (forma nem sempre carinhosa com que denominava a idolatrada salve salve, também conhecida nas colunas sociais como a República dos sem−memórias).
Com os frutos do teléque−téque da sua Olivetti Lettera 32, comprovando que quem sai aos seus não degenera, publicou, ou publicaram por ele, salvo engano, apenas três livros: Garotos da Fuzarca (1986), Ivan Vê o Mundo − Crônicas de Londres (1999) e O Luar e a Rainha (2005). Nenhum teve a honra e a graça de ser obsequiado com o selo da saudosa Codecri (que Deus a tenha!), braço armado, digo, amado, digo, editorial daquele grupo que adorava espinafrar a fina flor da opressão que vicejava (ó dor, ó azar, ainda viceja) por essas paragens sem fim, espremida nos limites geográficos da zona de conforto habitada pela burguesia semi−letrada que reside em Pindorama. Chama−se de História, o catalogar ordenado de cicatrizes. E contusões.
Publicar triplamente foi um feito, quiçá defeito, ou passe de efeito, de quem nunca exerceu habilidades em textos mais longos, satisfazia−se com, no máximo, sete ou oito páginas, mais do que isso era exagero, como aprendeu nas sacripantas, perdão, nas sacrossantas páginas de O Pasquim, onde exerceu cátedra e liturgia, além de inúmeros sacrilégios e mandingas. Para evitar comentários desnecessários da cri−cri−tica sobre a edição de suas obras incompletas, avisou: se alguém for pós−estruturar ou des−construir minha obra ver−se−á em papos de Osvaldo Aranha.
Em todo (des)caso, ler o Mestre da ironia, do sarcasmo, o escritor que adorava mandar todo mundo tomar no respectivo orifício excretor, é garantia de diversão primeira classe, centenas de frases sacanas, chistes ferinos e chiliques felinos, exercício lúdico e lúcido de brincar proustianamente com o passado, o presente e do futuro dos tempos imemoriais, muitos desses momentos constituídos pelos devaneios publicados nas sáfaras páginas de Gibi ou do Almanaque do Tico−Tico, quiçá em O Cruzeiro ou em A Cigarra?
Era uma galáxia com sabor de Sonho de Valsa, Mentex, chicletes Adams e Diamante Negro. Naqueles tempos em que era comum as paredes do quarto de qualquer adolescente normal ser decorada com o pôster do Cauby e o sanguinário quadro com o Sagrado Coração de Jesus, a vitrola deixava fluir as vozes da Emilinha Borba e da Dolores Duran embalando sonhos masturbatórios, causados pelos filmes de Ava Gardner e da Rita Hayworth (imperdíveis sessão de inicio de tarde no Riam ou no Metro).
Ivan Lessa tinha consciência de que o destino inglório dos "bons tempos", mesmo depois da anistia ampla, geral e irrestrita, deveria ser resumido em crônicas sobre episódios cotidianos e cenas protagonizadas nos "catecismos" de Carlos Zéfiro. Comprovando, de maneira inequívoca, que Surrealismo (...) sempre pôde, basta ter relógio derretendo para o tudo bem, o nada consta.
Se A única vantagem de ser mais velho é poder mentir para os mais jovens, Ivan também exerceu o inconveniente ofício de recordar histórias da vida privada: quem é que se lembra do Lochas? E do primo do Sunda? Não minta, sei que você lembra. Lembra. Ah, lembra. Só faz que não. Um ligeiro tremor na tua voz não consegue esconder que houve um relampejar de lembranças adolescentes, o nosso velho e bom atentado à moral, aos bons costumes e ao pudor, praticado naquele matinho ali perto da tua casa.
Morando em London, London desde antes que antes fosse antes, míseros 34 anos de exílio, sempre tentando aparentar um ar de quem está à vontade neste mundo, Ivan muitas vezes não conseguiu evitar, como derradeiro gesto patriótico, o agitar do lábaro estrelado que embrulha a saudade (esse sentimento que parece cortar a carne, a doer inexplicavelmente dentro do peito). Obviamente, essa emoção somente poderia ser cauterizada por uma fezinha matinal no jogo do bicho. O Tamisa é um poço de recordações da Lagoa Rodrigo de Freitas, e, se você dobra[r] à esquerda na primeira esquina, Kensington Gardens é o Andaraí. Vai dizer − gentil leitor esclarecido e escarnecido − que essas semelhanças com o Paraíso lhe escaparam?
Ivan Lessa, ilustre botafoguense, inimigo do assovio, a bordo de um Studebaker, levantando poeira e inveja, como todo exemplar raro da nossa fauna e flora, adorava fazer pose de british gentleman comendo morango com chantili em Wimbledon − enquanto perdia a razão e o bom senso ao ver as coxas de Maria Sharapova. Nas horas vagas sofria torturas inomináveis naqueles ônibus de dois andares, eating fish and chips nos intervalos entre as múltiplas sessões de Earl Grey ou Darjeeling with milk and honey in the five o’clock tea of Her Highness, the Queen, recitando versinhos do John Donne em Saint Paul Church ou carregando sacolas repletas de intragáveis enlatados, mercantilizados no Sainsbury ou no Tesco.
Ivan Lessa, assim como O Sombra, sabia que o mal se esconde nos corações humanos − e que cu cor−de−rosa é sinal de bom coração. Tanto que, em dado momento, não conseguiu segurar a emoção e declarou: Hoje, um pouquinho mais velho, sozinhão, bato uma bola diferente: essa de ficar no gol defendendo os pontapés do passado.
Gudináite, mai diar urraiter, espero que, nessa tua última viagem, haja uma mulher de preto no cais dando adeus com os olhos úmidos. Requiescat in pace.
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Em ritmo de post scriptum e epitáfio, caro Ivan Lessa, como que a prestar vassalagem a quem foi bom à beça, copiei de um dos teus livros as palavras de Robert Benchley: quando morre um humorista, a gente tem que procurar um bar onde toquem música barata e beber até ser expulso do recinto.
Comovente... Adorei
ResponderExcluirMorreu Millôr, morreu Ivan... Agora percebo a mediocridade das novas gerações. Lerei o luar e a rainha.
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