Páginas

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

AS LIMITAÇÕES DO TEXTO AUTOBIOGRÁFICO

Testamentos literários e políticos se caracterizam pela linguagem escrupulosamente seletiva. Em outras palavras, são textos decepcionantes. Aquelas partes sórdidas que costumam fazer a alegria de quem gosta de espiar pelo buraco da fechadura estão bloqueadas - muitas vezes para sempre. A verdade − essa ficção − desaparece diante do universo proposto por aquele que promete revelar tudo e... realiza−se como o rei da falsificação.

Somente o imaginário e a invenção sobrevivem como partes sólidas nos líquidos relatos que invadem a intimidade de uma vida.

O texto autobiográfico Onde Está Tudo Aquilo Agora? (Minha Vida na Política), de Fernando Gabeira, figura pop da história brasileira, gostaria de ser uma espécie de acerto de contas com o passado. Gostaria. Não é. Nunca será. Falta sentimento, sobra distanciamento. Também sobram muitas sombras interditas. A visível voracidade de contar o que não possui o mínimo interesse – para o leitor – permite que o inconsciente mergulhe em um mar de contentamento.

Escrever sobre a própria vida significa recapitular, de forma dissimulada, uma série de demandas (psíquicas, políticas, econômicas) – que, na medida em que são efetuadas, se modificam. Ou assumem novas identidades. O autobiógrafo, como diz Adam Phillips, quer alguma coisa, mas realiza o seu querer em um contexto muito diferente.

O passado (um dos segmentos da ficção) encontra−se irremediavelmente perdido. Tanto que Onde Está Tudo Aquilo Agora?, escrito na primeira pessoa, se refere a um cidadão que – provavelmente – não existe mais. O jornalista e escritor, militante do Partido Verde, ex−deputado federal, foi substituído por um espectro irreconhecível.

A primeira prova dessa mudança torna−se nítida em uma das informações paratextuais. Enquanto o livro mais significativo da bibliografia de Gabeira, O Que é Isso, Companheiro?, foi editado em 1979 pela Codecri (ligada ao grupo do jornal O Pasquim e, portanto, a um movimento de insurgência contra o poder constituído), o livro novo, Onde Está Tudo Aquilo Agora?, traz o selo da Companhia das Letras. É como se a água (líquido vital para a vida) tivesse sido substituída pelo petróleo (combustível fóssil poluidor da natureza). A razão desse proceder pode ser constatada nas inúmeras queixas econômicas que aparecem no texto (... aos 71 anos, sem bens materiais e com algumas pequenas dívidas herdadas da campanha). Ou seja, a necessidade de obter algum trocado/ pra dar garantia se impôs.

Obviamente, isso não é crime. Crime é publicar livro insípido, incolor e inodoro – ambicionando substituir o depoimento político por um balancete contábil. Crime é fazer esforço para borrar a imagem do homem que participou do seqüestro de Charles Elbrick (embaixador estadunidense) e, alguns anos mais tarde, foi à praia usando tanga de crochê (emprestada da prima, Leda Nagle).

Ninguém tem o direito de renegar a própria lenda e permanecer impune.

A prosa bem escrita (sem "ruídos", sem maculas), porém indiferente e fragmentada, se esparrama pelas 195 páginas do livro. Mas − se for eliminado o folclore − restará o quê? Considerando o que Gabeira escreveu, pouco, muito pouco. As memórias de infância são banais. A descrição do período de exílio beira o tédio. Salvo alguns episódios, todos expostos de maneira rápida e superficial, Gabeira sugere que nada de importante aconteceu. Os três mandatos consecutivos como Deputado Federal estão condensados em três capítulos rápidos, exatas 50 páginas. Fantástica aula de síntese.

Discretíssimo no relato da atividade paramentar, Gabeira faz alguns comentários fugazes sobre Luis Eduardo Magalhães e Severino Cavalcanti, figuras "diferenciadas" da história da Câmara Federal. Para outros políticos restam poucas citações episódicas, dessas que servem apenas para compor cenário.

Nesse depósito de trivialidades, se salvam as (pequenas e grandes) lutas por algumas (pequenas e grandes) causas. Mesmo assim, a descrição das minguadas vitórias circunstanciais carece de substância narrativa. O heroísmo e o esforço de resistência contra a corrupção e a iniqüidade política foram substituídos pela apatia e o marasmo. O leitor (cúmplice do pacto ficcional), ao ler tantas páginas anêmicas, não consegue escapar do entendimento que o autobiógrafo fixou, propositalmente, um limite para o que queria contar.

Enfrentando visível conflito psíquico para controlar anseios e desejos, Gabeira quase permite a releitura da expressão que utilizou no discurso em que se desligou do Partido dos Trabalhadores: Sonhei o sonho errado.

Do ponto de vista emocional, em lugar de escrever Onde Está Tudo Aquilo Agora?, provavelmente seria mais produtivo para Gabeira marcar consulta no psicanalista. O efeito liberador do que está represado seria maior e melhor. Para ele. Para o leitor.

2 comentários:

  1. Já li o livro de Gabeira que promete muito no título indagatório, mas decepciona no conteúdo porque não responde nada...mas livro e Gabeira se parecem, são fugidios e inconstantes, fracos, poucas frases inéditas e lances de comportamento na vida do autor e político que se adaptou como um camaleão, nem sinistro nem direito, ambidestro sem eficiência...Marlene Vieira Perez - escritora e poeta

    ResponderExcluir