Páginas

terça-feira, 21 de maio de 2013

POR ACASO, ESTAMOS VIVENDO O OCASO DO LIVRO FÍSICO?


Que os vendilhões do templo a-pós-o-moderno (embriagados pelas doces ilusões e alusões fornecidas pela voracidade do capitalismo) perdoem aos românticos, entre os quais me incluo, mas o livro físico – assim como a beleza – ainda é fundamental. Ainda. Não se sabe por quanto tempo será possível resistir ao canto da sereia. Com uma voz melíflua e persuasiva, a revolução digital se apossou da reprodutibilidade técnica. Inventou quimeras, blefes e engôdos. E, em qualquer situação que se apresente, apregoa a derrubada das bibliotecas, meros depósitos inúteis de toneladas de papel pintado com tinta preta (na maior parte das vezes). Por que cansar o corpo, carregando centenas de volumes, quando o mercado está vendendo diversos modelos de dispositivos eletrônicos para leitura? Basta escolher o que mais se adapta às necessidades. Leitores eletrônicos para 500 livros? Temos. 1000 livros? Moleza. Cada um deles está repleto de surpresas. Novidades inesquecíveis. Preços irresistíveis. Alguns, inclusive, permitem acesso à Internet. Quem poderia recusar tamanha facilidade? Quem poderia manifestar obstáculos ao futuro? Ou ao progresso?
Ninguém - embora assuste a velocidade com que o descartável, sem descanso, descarta o que não deveria descartar. De posse da maquininha fantástica, o indivíduo perde a noção de que o ato físico da leitura é uma experiência sensorial intensa. Desconhece o valor do contato de pele com pele, a mão naquilo e aquilo na mão. Gadgets se multiplicam através de algum método de reprodução assexuada, provavelmente imitando a experiência exponencial dos automóveis (os novos veículos, lançados a cada ano, muitas vezes diferem do modelo anterior por um parafuso cromado na lateral inferior do pára-choque). Basta conectar o fio na tomada. O mundo tecnológico não eletrocutará ninguém, afirmam. Pode ser. Inclusive porque faltará luz. Apesar das baterias. Ou similares. O combustível fóssil é finito, mas quem quer discutir essas bobagens nos novos tempos? Ou tempos novos? O que importa é oportunizar (oportunizar? chibata em quem usar esse tipo de expressão!), oportunizar a leitura de qualquer texto em qualquer lugar. Quem vai discordar desse tipo de argumento? Ora, quem conhece a História lembra que se os defensores da modernidade tecnológica descerem do salto alto onde estão encastelados e dedicarem uns dois minutos para acessar a Wikipédia (ou sítio similar) , o mesmo ponto de vista foi defendido por Johannes Gensfleischzur Laden zum Gutemberg, em algum momento entre 1440 e 1450, quando elaborou o sistema de tipos móveis e a impressão em série. Avanço tecno-mecânico que permitiu que o códice evoluísse para o formato livro. Isso pouco importa, dizem. O passado deve ficar no passado, as comparações não importam, estamos vivendo uma época de novidades e de esplendor. 
O que querem dizer é que, depois de quase 600 anos, chegou o momento de substituir o suporte que consagrou o livro físico como a mais importante ferramenta de transmissão do conhecimento. É o que proclamam. Sem remorsos, sem noção de que queimar a História equivale destruir a humanidade, flertar com a frivolidade, negar que a vida é um continuum de aprendizagem. Nenhum problema, gritam. Ler um romance de 500 páginas na forma física ou na tela exige tempo e reflexão crítica. Elementos opostos ao time is money que corrói o conhecimento, transformando-o em sinônimo de comercio. Ou outdoor da propaganda ideológica. Ou qualquer outra porcaria. Que aqueles que não são adeptos da leitura perderam o olfato, não conseguem distinguir entre uma coisa e outra. Jamais saberão o quanto é bom o cheiro de livro novo. Nunca admitirão que o conhecimento não é asséptico e, entre outras surpresas, carrega quilos de poeira em suas páginas. Ignoram que cada livro possui peso e que é bom carregá-lo debaixo do braço ou nas mãos. Não percebem que o som de folhear um volume equivale a uma sinfonia. E que livro exposto na vitrine de livraria se assemelha às tentações mais irresistíveis. Tão irresistíveis como algumas palavras que, a cada dia, se tornam estranhas. Iluminuras, incunábulos, brochuras, alfarrábios. Palavras que perderam os sentidos. Desmaiaram diante da avassaladora presença da linguagem utilizada pelos dominadores. E-book, E-reader, E-bullshit. Parte da poesia que emana do viver está desaparecendo diante do ocaso do livro físico – que é o mesmo da cultura e da civilização. 

3 comentários:

  1. Que belo texto, Raul! Partilhamos da mesma opinião, e me considero sua amiga de alma. Foi um prazer inaudito lê-lo e me emocionar com tudo o que postou. Somos dois, fiquemos com os nossos, deixe as discussões supérfluas para os inventores de moda.
    Um abraço carinhoso.
    Monique

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, Mônica. Parte de nosso esforço, como seres humanos, se comprova no resistir à mediocridade e à barbárie. Enquanto pudermos.

      Excluir
  2. UM BELO TEXTO POR UMA EXPERIÊNCIA NÃO APENAS SENSORIAL MAS SENSUAL DOS LIVROS, VEJO NOS TABLETS UMA EXPERIÊNCIA METAFÍSICA DO TEXTO, MAS PREFIRO A EXPERIÊNCIA PESADA, SUJA, ÚNICA E SEXUADA DO LIVRO DE PAPEL, E NÃO APENAS DOS QUE SE LEEM COM UMA SÓ MÃO, É CLARO.

    ResponderExcluir