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quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

LIVROS QUE BRINCAM DE ESCONDE-ESCONDE


Alguns livros costumam brincar de esconde-esconde. Parece nonsense. Ou conversa de quem não tem nada de mais interessante para fazer. Não o é. Nos dois casos. Muito pelo contrário. 

Outro dia, ao ver algumas postagens em rede social sobre História Social do Jazz, texto escrito (com o pseudônimo de Francis Newton) pelo excelente, não, excelente é muito pouco, magistral Eric Hobsbawn, senti saudades do meu exemplar. Nesses 15 anos que o livro frequenta minhas estantes, esporadicamente o convoco para uma pequena cerimônia. Enquanto algum CD, Charlie Parker ou Thelonious Monk ou Cannonball Adderley, por exemplo, preenche o silêncio com aquela beleza que supera a força da razão, costumo ler em voz alta, de forma aleatória, algumas páginas. Sempre encontro boas observações, análises que superam a trivialidade cotidiana (O que o amante de jazz escuta, portanto, depende não apenas das necessidades criativas dos músicos e de outras variáveis do gênero, mas também da maneira como o jazz se organiza como negócio).

Por uma dessas desafinadas que caracterizam a existência, fazia muito tempo que não o folheava. Como todo sujeito desorganizado, sabia exatamente onde o havia deixado. No entanto, não o encontrei. Não estava lá, não estava onde deveria estar nem mesmo em outros lugares. Desapareceu. De forma inexplicável. Não me restou alternativa senão procurá-lo em paragens insuspeitas. Movido por um surto de incrível criatividade, comecei pelos volumes de música. Encontrei, entre outros, Descobrindo o Melhor do Jazz (Stephen M. Stroff), Kind of Blue (Richard Williams), Todo Aquele Jazz (Geoff Dyer) e Jazz, Uma História em Quatro Tempos (Roberto Muggiati). Isso sem falar nas biografias: Chet Baker, Billie Holiday, Charles Mingus, etc. Excelentes livros, nenhuma dúvida, mas incapazes de diminuir o sentimento que estava me angustiando.

Entre a irritação e o medo da perda, vasculhei as prateleiras onde estão reunidos os volumes de “artes”. Também esquadrinhei os ensaios políticos e literários. Nem mesmo os romances ingleses escaparam. Sabia que o Hobsbawn lá não deveria estar, mas acidentes acontecem, cabe estar preparado para surpresas. Imaginei que – por afinidades eletivas – o livro poderia encontrar-se fazendo companhia aos textos escritos por Raymond Willians, Perry Anderson e Frederic Jameson, seus (e meus) camaradas marxistas na tumultuada caminhada pela crítica social. Nada. Nem sombra.

Perguntei mil vezes: onde será que ele se escondeu? Nenhuma resposta. Abri e fechei diversas caixas. Busquei até no guarda-roupa, onde não há (por enquanto) nenhum livro.

Certas tarefas são semelhantes ao procurar agulha em um palheiro conforme dizia minha avó, uma sábia senhora, e que possuía um arsenal de provérbios populares, prontos para ser disparados em qualquer direção. Neste caso específico, ela (se viva estivesse) provavelmente diria que, além do risco de uma inesperada aguilhoada, a loucura está à espreita. Por isso, nessas encruzilhadas em que a lógica perde o rumo, muitas vezes a melhor alternativa é esquecer. E seguir em frente, sem olhar para trás. É mais saudável. 

Obviamente, não foi essa a minha decisão. No mundo da bibliofilia, não há cura para algumas manifestações do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). Continuei a busca. Continuei escavando a memória – como se estivesse lendo as instruções de algum mapa do tesouro. Nada encontrei.

O suor me obrigou – várias vezes – a interromper a investigação. Depois de secar a testa e reidratar o corpo com um copo de água (que, naquele instante, me pareceu ser uma espécie de passo na direção do Paraíso), tentei fazer uma relação mental dos locais em que o livro poderia estar escondido. Não descartei as hipóteses mais absurdas. A primeira foi rapidamente eliminada. Impossível tê-lo emprestado para alguém. Costumo utilizar o acervo de algumas bibliotecas (públicas, particulares), mas são raros os casos em que rompi com o egoísmo que caracteriza a posse. Além disso, tenho surtos de síndrome do pânico ao ver a maneira selvagem com que alguns leitores tratam os livros. Então, procuro evitar a possibilidade do meu patrimônio físico-intelectual ser torturado pelos representantes da barbárie do conhecimento. A segunda possibilidade se mostrou ainda muito mais surrealista. Será que era possível que um ladrão excêntrico tivesse invadido o apartamento em que moro para – em um momento impar de consciência musical – furtar apenas o meu livro de jazz?

Cansado, pensei em comprar um novo exemplar. Mas, antes de adotar essa medida extrema, que, de certa forma, equivale à consciência da finitude da vida dos livros, deixei a situação em suspenso durante algum tempo. Talvez, depois de uma ou duas noites de sono, o volume – cansado da brincadeira – surgisse do nada e, diante do meu olhar de espanto, dissesse: olá! 

Claro que ele continuou desaparecido.

Carregando no olhar a ausência de esperança, repeti – pela quarta ou quinta vez – o ritual da procura. 

Subitamente, o mar de papel se dissolveu. Contra todas as probabilidades matemáticas, o livro apareceu. Estava lá. No lugar onde imaginei tê-lo deixado.

Não quero entender o que aconteceu, não quero saber o porquê de não tê-lo visto antes. Certas situações dispensam explicações. O único mistério que me interessa revelar é que a visão da capa do livro reinstalou a alegria no meu rosto.

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