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quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

VIDA DE ARTISTA

Quem tem medo de Henry James? Perguntas retóricas não exigem respostas. Embora, neste caso, como é de conhecimento público, poucos são os leitores da ficção de língua inglesa capazes de esboçar algum argumento coerente, que possa justificar o afastamento que existe entre o público contemporâneo e um dos maiores escritores da história da literatura.

A desculpa utilizada pelos leitores mais pragmáticos consiste em repetir ad nauseam que “nada acontece” nas narrativas de Henry James. São páginas e páginas repletas de parágrafos longos e centenas de palavras – que ficam rodopiando dentro das frases como uma espécie de redemoinho posto lá, de propósito, para confundir o leitor. O desenvolvimento arrastado do enredo (conjugado com monólogos interiores, reflexões filosóficas, flash-backs e descrições detalhadas) multiplica de forma exponencial os pormenores e as minúcias. Cada um dos romances, novelas, contos, peças de teatro e ensaios se parece com uma daquelas tias antigas que, ao visitar os parentes, não se dá por satisfeita senão quando nada mais resta para ser esmiuçado. E isso demora. Muito.

Os leitores com alguma visão política costumam lembrar que Henry James recortou o mundo de tal forma que as classes subalternas se tornaram invisíveis. Parte dessa situação se explica por uma intensa mobilidade geográfica dos ricos, que estão sempre chegando ou partindo para terras distantes. De acordo com os textos de Henry James, os estadunidenses (leia-se: nouveaux riches) adoram atravessar o Atlântico e beber na fonte civilizatória de Londres. Os ingleses – que sempre tiveram imensa curiosidade pelo exótico – visitam lugares distantes como Nova York ou a Europa continental (Itália, França, Grécia) e lá vivem as aventuras que o dinheiro pode comprar. Como o mundo é pequeno e todos aqueles que integram o grand monde frequentam os mesmos ambientes, há – inevitavelmente, em algum momento dessa azáfama nômade – muitos reencontros.

Henry James possuía uma técnica narrativa refinada – e que se caracteriza pelo poder de aproximar o leitor da cena, como se estivesse observando os acontecimentos pelo buraco da fechadura. Mesmo que seja apenas em ficção, a sensação de participar da vida alheia é um poderoso afrodisíaco.

Henry James e seu irmão, o filósofo William James
Essa sensação está presente nas histórias que integram o volume Vida de Artista – quatro contos sobre pintores. Escritos em diferentes momentos, abordando aspectos diversificados da vida amorosa dos personagens, esse conjunto temático disseca com vigorosa crueldade as afinidades que (não) existem entre a literatura e as artes plásticas. Interessado em pintura, assim como seu irmão William James, Henry foi aluno de William Morris Hunt. Foi no atelier do professor que descobriu o mundo que envolve as tintas, as telas, os modelos, a atmosfera intelectual. Henry, ao perceber que o irmão possuía mais talento do que ele, abandonou o pincel. Foi um amigo, John La Farge, que, ao visualizar o seu talento literário, o estimulou a pintar com palavras.

Ao longo do tempo, Henry James se tornou amigo de outros pintores, principalmente James Whistler e John Singer Sargent, acumulando conhecimento para, mais tarde, nos romances Roderick Hudson (1876) e The Tragic Muse (1889), desenvolver com maior eficiência o tema.


Os quatro contos que integram Vida de Artista possibilitam uma interessante perspectiva das sutilezas que estão em jogo na vida social do século XIX. O aparente nunca corresponde ao real e o real oscila entre o tragicômico e o patético. 

A história de uma obra-prima (The story of a masterpiece, 1868) abraça um sentimento perigoso: o ciúme. John Lennox, viúvo, rico, 35 anos, ficou noivo da senhorita Marian Everett.  John a viu, sentiu amor por ela e pediu a sua mão. Ela, que não tinha um centavo, segurou com as duas mãos esse presente dos deuses. John, em um momento de taedium vitae resolveu visitar o pintor Gilbert. No estúdio, em lugar do amigo, encontrou um artista desconhecido. Depois das apresentações formais, John descobre que Stephen Baxter, em um passado não muito remoto, foi apaixonado por Marian. Se esse tema estivesse nas mãos de outro escritor provavelmente haveria alguma complicação, talvez um round de boxe ou, para manter acesa a chama da paixão, um duelo ao amanhecer. Civilizadamente, John contorna todas as dificuldades e contrata o artista para pintar a futura esposa. Então tá, agora vai ter confusão, antecipa o leitor moderno, imaginando cenas de sexo selvagem e mais sangue. Nada disso. Acompanhada pela tia, Marian posou para a pintura sem fornecer o mínimo espaço  para alguma travessura. Quando o retrato está quase pronto, John vai até o atelier e vê a tela. Era Marian, de verdade, e Marian medida e observada pacientemente. Sua beleza estava lá, bem como sua ternura e seu encanto jovial e sua graça etérea, capturados para sempre, tornados invioláveis e perpétuos. Infelizmente, John esperava ver algo diferente. O quê? Difícil precisar. A pintura não corresponde à imagem da mulher com quem ele vai se casar.

A Madona do futuro (The Madonna of the future, 1873) conta a história de Theobald, o artista que pintou apenas uma obra-prima. Ou melhor, que não a pintou, pois, descontados os desacertos da vida, o que importa é a possibilidade de tê-la pintado. Seguindo o olhar do narrador, percebe-se uma linha de sombra na direção do desperdício. Ou seja, os sonhos não conduzem à salvação, não fornecem nenhum tipo de compensação para o imenso desgaste que acompanha o imobilismo.

O Coronel Clement Capadose, o divertido protagonista de O mentiroso (The Liar, 1889), representa um quebra nos padrões aristocráticos ingleses do século XIX. Ao construir uma “verdade” particular, muito distante da realidade aceita pelos círculos sociais, ele se torna uma espécie de urso de feira, uma anomalia simpática e inofensiva. Todas as suas mentiras são perdoadas. O pintor Oliver Lyon, ao perceber essa situação, fica atônito. Um mentiroso é um mentiroso e como tal deve ser denunciado, argumenta. E isso significa, na avaliação do narrador do conto, que Para uma pequena mentira contada sob pressão, um lugar conveniente geralmente pode ser encontrado, como, por exemplo, uma pessoa que, em uma estreia de uma peça, se apresenta com um recado do autor. Mas, a mentira exagerada é como o cavalheiro sem um ingresso que se acomoda com um banquinho no meio da passagem. Talvez eles (Oliver e o narrador) estejam com a razão, talvez quem possua um pouco mais de coerência seja Everina Capadose – que apoia o marido em todas as suas incursões pelo mundo da fantasia.

Retrato de Thomas Morus,
pintado por Hans Holbein
 Em O Holbein de Beldonald (The Beldonald Holbein, 1903), provavelmente a melhor história desta coleção, o enredo desliza entre ciúme (querer manter o que se tem), cobiça (querer o que não se tem) e inveja (não querer que o outro tenha). Lady Nina Beldonald, cunhada da Sra. Munden, está relutante em posar para um retrato. A estadunidense sempre encontra um motivo para adiar a tarefa. A última desculpa foi a enfermidade da Sra. Dadd, sua dama de companhia. Enquanto espera pela substituta, a Sra. Louisa Brash, uma prima distante, Lady Beldonald se recusa a participar de qualquer atividade social. Algum tempo depois, quando o narrador promove uma pequena recepção à tarde, entre os convidados estão a Sra. Munden, Lady Beldonald (que está acompanhada da Sra. Brash) e um pintor francês, Outreau. É o amigo continental que chama a atenção do narrador para uma mulher: – Bonté divine, mon cher, que cette vieille est donc belle! Quem? Ao descobrir que se tratava de alguém vindo do outro lado do oceano, imaginou ser Lady Beldonald. Estava enganado. Outreau aponta para Sra. Brash e, dono de um faro infalível para o banal, decreta: é um Holbein! Estava se referindo a Hans Holbein (1497/8-1543), pintor alemão que ficou célebre como retratista. Lady Beldonald, informada do interesse dos pintores por sua dama de companhia, ficou incomodada. Ou melhor, ficou indignada. Como era possível que eles estivessem falando da beleza da outra, quando era ela quem merecia destaque? Tratava-se de um drama em torno de pequenas coisas suprimidas e intensamente íntimas. A recepção se dissipou rapidamente. Lady Beldonald, visivelmente ofendida, se recusa, mais uma vez, a posar para a pintura. A Sra. Brash, que sempre negou a própria beleza, por um instante apagou o brilho de sua protetora. (...) qualquer corda, quando esticada demais, acabava por arrebentar – a lição se apresenta aos alunos relapsos. Lady Beldonald mandou Louisa Brash de volta para Estados Unidos. E o comentário do narrador sobre o episódio está sintetizado em uma frase de efeito: A pequena cidade americana não era um mercado para Holbeins, e o que aconteceu é que a pobre pintura antiga, uma vez banida de seu museu, e não inspirando qualquer menção de que poderia novamente ser exibida, foi capaz de operar uma revolução silenciosa, de, em sua hedionda desonra, virar a si mesma contra a parede.

Henry James foi, antes de tudo, um escritor que manejava a língua inglesa com maestria. Seus contos, inclusive os que integram Vida de Artista, são aulas sobre a arte narrativa e o comportamento humano. Ter medo dele é ter medo da vida.



Um caminho possível para quem quiser conhecer um pouco da vida pessoal de Henry James passa pelo romance O Mestre, do irlandês Colm Tóinbín. Não é a única alternativa. Nem a mais difícil. Outra possibilidade é mergulhar na obra, pois há dezenas de traduções  seja dos romances, seja de parte dos contos. 

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