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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

MEMENTO MORI



Bondade, gentileza, generosidade e simpatia estão associadas com a velhice – a experiência mais terrível da existência humana. Não há um único ser humano na face da Terra que não sonhe com mães e pais, tias e tios, avós e avôs exemplares. Desses que adoram as crianças, são tolerantes com os adultos e suportam os outros velhos. E, sobretudo, aparentam felicidade enquanto esperam a indesejada das gentes.

A escocesa Muriel Spark, nascida Muriel Sarah Camberg (1918-2006), consciente de que a crueldade nunca está relacionada com a idade cronológica, tinha um olhar diferenciado para essas questões – como comprova Memento Mori, um dos mais impiedosos (e divertidos) exercícios literários sobre a decomposição do corpo físico e intelectual. A forma linear com que estão encadeados os elementos que compõem a carpintaria narrativa valoriza o texto – que mistura humor negro e ironia na medida certa. 

Quase todos os personagens do livro estão na faixa entre 70 e 80 anos – embora, em diversas ocasiões e circunstâncias, alguns deles se comportem como adolescentes mal-educados. Sem o mínimo escrúpulo – e sempre que surge a oportunidade – mentem, traem, roubam, tentam machucar uns aos outros. Seja através de atos físicos, seja utilizando a violência silenciosa das palavras, destroem qualquer coisa que atrapalhe a ambição, a inveja, a mesquinharia, o ciúme, a carência afetiva e os desvios de caráter. Se eles não estivessem tão perto da morte, poder-se-ia dizer que estão lutando pela vida. Desesperadamente.

Um elemento adicional atrapalha a diversão. No telefone, uma voz sem identificação anuncia para todos os idosos: Lembre-se de que vai morrer. Somente isso. Quem recebe o aviso entra em pane. Embora a morte possa atingir a qualquer um, a qualquer instante, ser intimidado não ajuda a manter a sanidade.

Muriel Spark em 1960
Toda essa movimentação pode ser resumida em parte da conversa entre a Dame Lettie Colston e Taylor. Quando a ex-patroa visita a sua antiga empregada, que está morando em uma casa de repouso, Taylor, com boa dose de estoicismo, coloca o dedo na ferida: Ter mais de setenta anos é como estar em guerra. Todos os nossos amigos estão indo ou se foram, e nós sobrevivemos entre os mortos e os moribundos, no meio de um campo de batalha. A elegância que Lettie sempre defendeu não permite que concorde com esse delírio mórbido. Talvez seja por esse motivo que Taylor completa o pensamento: Ou então sofrendo de neurose de guerra. Viver significa carregar lembranças, pecados, iniquidades.

As 251 páginas de Memento Mori, que foi publicado em 1959, se parecem com um campo minado, armadilhas explosivas espalhadas pelo chão, centenas de vítimas a cada movimento humano. A proximidade da morte não é uma visão agradável. Por isso a personagem mais ambiciosa da narrativa, Mabel Pettigrew, se mantém ocupada o tempo todo. Seus golpes contra os ingênuos se repetem com assiduidade. Movida por interesses pouco éticos, aceita posições subalternas, não se incomoda em chantagear quem tenha algum segredo a esconder, fornece lembranças eróticas (!!!) para os pervertidos. Ela quer o dinheiro. Nada menos do que isso.

Outros personagens perseguem o reconhecimento social, a paixão intelectual, a estabilidade financeira. Todos se desapontam ao perceber que a tranquilidade em que se encontram não serve para resolver os problemas. A grande tragédia reside no fato de que não possuem forças para enfrentar o vendaval da vida ou a voracidade da morte.



P.S: A expressão latina Memento Mori significa lembre-se que você é mortal ou lembre-se que você vai morrer.
 

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