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sábado, 5 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLVI)



Lavar a louça me aproxima da filosofia. O calor do corpo contrasta com o vidro e a porcelana de copos e pratos. O tempo e o espaço são engolidos por um vórtice difícil de definir. Olho para as mãos molhadas e percebo que a (minha) vida está pulsando. Sêneca e Epicuro (que li em tempo pretérito) voltam a fazer sentido.

Contei nove colheres, três garfos e cinco facas. Deve existir alguma explicação lógica para essa falta de proporção. A grande dificuldade está em entender porque usei mais um talher e menos o outro. Poderia rastrear as últimas refeições, investigar quantas vezes abri e fechei a gaveta onde essas ferramentas estão guardadas. Não há necessidade de fazer isso. O desejo não está voltado para essa direção.

Ninguém lava a louça duas vezes na água que escorre pela torneira. Imagens e pensamentos aparecem e somem na medida em que o trabalho vai sendo realizado. A ação mecânica do ato doméstico (não) corresponde à sensação de que tudo está envolto pelo transitório. A espuma que encobre o prato (que em algum momento esteve sujo) sinaliza que algum tipo de perda está próximo. Limpar a louça significa produzir outra realidade, atravessar o momento de conflito e descobrir que os afetos desequilibram o controle das emoções. Ter consciência de que, em algum momento, a dor terá consistência e espessura.

Nada perdura. Tudo existe (em algum momento ou dimensão). A luta consiste em perseguir o entendimento que foge a cada instante, que não se deixa apreender. Em alguns momentos, o sinônimo do existir é o esquecimento.    

Diante da pia, algumas analogias. Ao manejar o pano de prato surgem figuras, sombras e sobras. Os fantasmas. Seres que anunciam o horror. Ou o fim do mundo. Que no es lo mismo / pero es igual, como cantou um dos muitos menestréis de América Latina. Difícil manter a serenidade e o estoicismo diante das urgências do agora.

Talvez seja sensato viver cada dia como se fosse o último. Sem pressa, sem se ater aos interesses daqueles que querem comprar e vender mercadorias como se fossem artigos necessários para garantir a felicidade. A ilusão não pode ser uma proposição existencial, mas também não pode impedir a utopia.

Terminada a tarefa, os pratos, os copos e os talheres limpos, o cenário se modifica. Restam muitos fiapos do pensamento, fragmentos da busca intelectual, e a certeza de que o caos do mundo jamais será domesticado. O vazio se estabelece como uma brasa dormida. De qualquer forma, amanhã recomeço. 

     

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