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quinta-feira, 17 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXI)

 


O racismo é um dos nós górdios da brasilidade. A dívida histórica que o país contraiu com os descendentes de escravos costuma gerar um grupo de negacionistas e, consequentemente, acentua a discriminação. Quem tiver dúvidas sobre o tema, antes de qualquer chilique, por favor, consulte as informações disponíveis sobre renda familiar, empregos, habitação, grau de escolaridade, número de presos, etc.

Sem se ater sobre os fatos históricos, nem efetuar uma análise sociológica desse fenômeno, visto que muita coisa foi escrita e/ou discutida sobre o tema, o que chamou a atenção, recentemente, foram três acontecimentos que não receberam a devida atenção da mídia.

Em medida cautelar (e que, portanto, precisa ser confirmada pelo colegiado), o Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Eleitoral, decidiu que os partidos políticos devem incentivar as candidaturas de pessoas negras nas eleições municipais de 2020. Ou seja, os negros terão direito ao financiamento de campanha e tempo de propaganda eleitoral gratuita no radio e na televisão em patamar proporcional aos candidatos brancos.

O vereador Fernando Holiday, nome político de Fernando Silva Bispo, filiado ao Partido Patriotas, apresentou, na Câmara de Vereadores de São Paulo, um Projeto de Lei para extinguir as cotas raciais nos concursos públicos da cidade. Alega que o sistema estigmatiza os negros, excluindo-os do mercado de trabalho. Quando percebeu que não teria os votos necessários para que o Projeto fosse aprovado, preferiu desistir de levá-lo a plenário. (Obs.: Fernando Holiday é negro).

Em partida pelo campeonato francês de futebol, Neymar da Silva Santos Júnior (Paris Saint-Germain) se desentendeu com Álvaro Gonzáles Soberón (Olympique de Marseille). Após ser expulso da partida, por agressão física, o brasileiro acusou o espanhol de racismo. Em contrapartida, a televisão espanhola recuperou parte da briga entre os jogadores e, através de leitura labial, acusou o jogador brasileiro de homofobia.

No conjunto, esses três episódios revelam que a questão é complexa. E que está longe de ser solucionada. Enquanto a paridade entre os candidatos na eleição municipal estabelece (discutível) equilíbrio nas candidaturas, a proposta do vereador paulista beira o nonsense. Querer destruir a possibilidade de acesso de um grupo que costuma ser preterido (exatamente pela cor da pele) somente se tornou possível em um tempo em que os valores foram invertidos.

O último caso merece uma análise mais detalhada. Alguns anos atrás, perguntado sobre o tema, o jogador do PSG negou ter sido vítima de racismo em qualquer momento de sua carreira e, mais interessante, declarou que não era negro. Na época, houve quem perguntasse se o efeito Michael Jackson havia atingido o rapaz. Como o autoengano é comum naqueles que vivem em um mundo particular e o futebol é uma terra sem lei (principalmente porque o jornalismo esportivo costuma ser parcial), a contradição foi jogada para debaixo do tapete. Na semana passada, Narciso olhou no espelho e viu que a imagem não correspondia à projeção do ego. Deve ter sido um choque para o jogador descobrir que não é branco – e, pior, só tomar conhecimento desse fato na França, que, como se sabe, é um país civilizado (embora trate mal os estrangeiros). Se o zagueiro espanhol o fez perceber que nem tudo é bonito e glamoroso (ou ele, em ritmo cai-cai, resolveu transferir a culpa pela derrota de sua equipe), o que é que se deve dizer sobre o comentário a respeito da sexualidade de Álvaro Gonzáles? Um preconceito não substitui o outro. A coerência nunca foi a principal qualidade dos jogadores de futebol (independente da cor da pele).    





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