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terça-feira, 22 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXIV)

 

A Primavera ou Alegoria da Primavera, têmpera sobre madeira, 1482,
de Sandro Botticelli, pseudônimo de Alessandro di Mariano di Vanni Felipepi (1445-1510).


Mudaram as estações, nada mudou

Mas eu sei que alguma coisa aconteceu

Tá tudo assim, tão diferente”

(Renato Russo).


No primeiro dia da primavera, o vento suave, porém frio, penetrou na carne até atingir os ossos. Mesmo assim, fui para a sacada ver as pessoas e os carros que passavam pela avenida.

O mundo não parou, constatei mais uma vez. O movimento continua intenso, um caudal de gente se deslocando, quase todos usando máscara. Seja por segurança ou por medo, a presença dos negacionistas e delirantes se tornou artigo raro. Melhor assim, mas não me iludo, eles existem, e, escondidos atrás das máscaras, aguardam o momento de aspergirem o mundo com Covid-19, hidroxicloroquina e ivermectina.

Antes do almoço, um acidente. Lá na ponte. Nada significativo. Prejuízos materiais e o susto. Barbeiragens. Não foi novidade. Basta alguém estar com pressa ou distraído ou falando no celular. Ou, em hipótese que não pode ser desprezada, a soma dos três motivos. Rapidamente, uma multidão se formou. Enquanto olhavam os estragos, emitiam opiniões sobre quem era o culpado e o que fariam se estivessem em situação parecida. Alguns hábitos nunca mudam.

No final da tarde, fui comprar pastel – uma dessas vontades insanas que aparecem não se sabe de onde. A pastelaria fica perto, uns cinquenta metros de distância, talvez um pouco mais. Antes, vesti o casaco, que a temperatura baixou e o inverno se recusa a ir embora. Não estava bom – o pastel. Gorduroso. Nem mesmo grandes goles de Coca-Cola conseguiram melhorar a situação.

Estou retornando a leitura de Estrela Vermelha (São Paulo: Boitempo, 2020), do Aleksandr Bogdanov, um romance de ficção científica estranhíssimo, escrito em 1908, e que retrata uma viagem a Marte, onde existe um governo comunista. Espero mudar de opinião quando chegar ao final, mas por enquanto me parece pouco atrativo. Talvez seja a linguagem, talvez seja o olhar viciado na literatura de outros escritores do gênero. Talvez seja essa semana, que está a pedir leituras mais convencionais, talvez um romance água com açúcar, desses que naufragam em cenas de encontros furtivos ao cair da tarde, beijos castos e todos os estereótipos que se repetem infinitamente como se fossem grandes novidades. Talvez seja hora de reler Persuasão, da Jane Austen, promessa que vivo adiando faz um bom tempo.

Amanhã ou depois, se o frio desaparecer, o mundo vai ficar colorido, árvores e flores nos mostrarão que, apesar das complicações, a vida sempre renasce. Aliás, esse é o mote da mitologia grega ao celebrar o tempo em que Perséfone deixa Hades (senhor dos infernos) e vai viver por seis meses (primavera-verão) com sua mãe, Deméter (deusa da agricultura e da fecundidade).

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P.S: no final da tarde, precisando escolher entre Quatro Estações, do Antonio Lucio Vivaldi (1678-1741) e A Sagração da Primavera, do Igor Fiódorovitch Stravinsky (1882-1971), fugi da zona de conforto e ouvi uma das músicas clássicas mais assustadoras da história. Foi uma forma estranha de saudar a estação que se inicia e, simultaneamente, me despedir do inverno.  Le roi est mort, vive le  roi!


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