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segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXIX)

 


Certa vez, em Paris, uma senhora garantiu para Julio Cortázar que ele, Cortázar, não era Cortázar. Para ela, o autêntico Cortázar era um senhor de cabelos brancos, que nunca saiu de Buenos Aires, e que era amigo próximo de um parente.

O estranhamento também está presente em um verso de Cecília Meireles, Em que espelho ficou perdida a minha face? A interrogação projeta um universo paralelo, onde as regras são outras – ou as mesmas, embora pareçam ser diferentes. Trata-se de jogo especular, destinado a perseguir os ingênuos e os cegos para que, em algum momento, possam alcançar a compreensão dos acontecimentos que ocorrem ao redor.

Diante do duplo, essa ilusão de ótica que embaralha o real e a miragem, o mundo onírico costuma fracionar os indivíduos. Muitas pessoas raramente conseguem se lembrar dos sonhos e pesadelos que perturbam as noites. Penso que isso é um alívio, um mecanismo de defesa contra os horrores diários. Nem sempre essa barreira funciona. Em um dos últimos sonhos, eu estava em um lugar que foi importante no passado, mas povoado por pessoas do presente e por alguns mortos. Era uma situação completamente inverossímil, mas que parecia estar estruturada em algo coerente. A angústia da travessia foi inevitável, não consegui me reconhecer naquele ambiente opressivo. Embora fosse eu, estivesse vestido com o meu corpo, usasse a minha voz, era outro, era um desconhecido. Despertei banhado em suor e espanto. Em seguida, tornei-me hóspede da insônia. Uma sensação áspera de tristeza.  

Não sei o que a psicanálise poderia dizer sobre esse tipo de desassossego. Provavelmente não será algo agradável. Nunca o é. Dormir não diminui as dores – muitas vezes, em lugar de congelá-las por algum tempo, deixa a porta aberta para que possam invadir a vida. E o que era para ser certeza se transforma em algo pastoso, desagradável meleca grudada nos dedos da humanidade.    

As notícias diárias sobre a morte de amigos, conhecidos e inimigos (sim, tenho alguns desafetos de estimação) me lembram de que a finitude da existência (que era apenas uma ameaça até ontem – quando me julgava jovem) adquiriu substância, perdeu a leveza, tornou-se um fardo. E parece estar ali na esquina, à espera de um momento de distração. Aqueles que cultivam saudável paranoia sabem que Cloto, Lakésis e Átropos continuam decidindo a extensão do fio da existência. As Moiras (Μοῖραι) nunca descansam.

Não tenho planos grandiosos para o futuro, mas também não quero ir embora. Prefiro continuar incomodando um pouco mais. Por isso, e um amontoado de outros motivos, torna-se difícil negar que sou um indivíduo com medo da própria sombra. 

Cortázar era múltiplo, mas não era o velhinho que a mulher imaginava. Aquele personagem não tinha densidade, não estava repleto de fantasmagonias. Era apenas uma figura do imaginário, um sonho ruim. A vida e a literatura exigem mais – de todos nós.


6 comentários:

  1. Que pedrada meu amigo. Amei o texto.
    Bada

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  2. Raul, meu amigo, eis aí um destemido testemunho do nosso tempo. Puro, real e contundente. São sombras que retornam, como as de Joseph K. São dúvidas que penetram na longa noite.
    Os 'contrários' sempre aprontaram na vida e na literatura. Disso, nos já fomos apresentados. Por Lewis Carol, por Camus e tantos outros. Mas, ao que tudo indica, não tomamos a vacina certa, não criamos imunidades... vida que segue.
    Parabéns, amigo, pelo texto redentor, que pode não nos salvar. Mas, redime muitas angústias!

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