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sábado, 26 de dezembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXXI)

 


Esta época do ano solicita alegrias, presentes, esperanças e orações. Lamento pelos que pensam assim. Vou quebrar a regra civilizatória do bom comportamento e dizer (escrever) que as festas de dezembro me deixam depressivo. 

O passado costuma costurar de forma descuidada as piores recordações. Em momentos de euforia (ou seja, de descuido), alguns remendos de péssima qualidade fogem das gavetas onde estavam guardados a sete chaves e desfilam pela passarela que chamamos de história pessoal.

Paradoxalmente, todas as complicações (e foram muitas) produziram um benefício: reforçaram a couraça – o suficiente para evitar a dose extra de medicação ou de álcool. Em outras palavras, choro pouco. Cada vez menos. Estou ficando desidratado de sentimentos. O que talvez confirme o que dizem os astrólogos: os aquarianos não possuem coração.   

Morador da aldeia, no alto de um planalto provinciano, longe de tudo e de todos, muitas vezes pensei em fugir. Para onde? Não sei. O canto da sereia tem os seus encantos, acena com recantos escuros e escusos, prazeres que poucos experimentaram. Arrumei as malas e fui (várias vezes). Insisti em deixar para trás as ruas que testemunharam brigas de família e conflitos variados. Pensava que ser adulto significava recusar o que oprime. Sem qualquer tipo de compromisso, sem olhar para trás, protagonizei aventuras em outras paisagens. Foi uma felicidade fria / daquele tipo de alegria, / triste como nostalgia, como definiu o João Mantuano em uma de suas canções.

Em determinado momento, cansado de trapaças e trapalhadas, percebi que mesmo quando alcançamos os lugares mais distantes, estamos sempre voltando para casa. Ninguém consegue resistir às forças ancestrais. Então tá, disse para mim mesmo, enquanto encaixotava livros e lembranças.  

Outra vez na capitania hereditária, fiz questão de manter ao redor do castelo um fosso com jacarés famintos. Só abaixo a ponte levadiça para uma meia dúzia de amigos e uma minúscula parcela da família. A vida é curta demais para perder tempo com quem adora causar aborrecimentos.

Quando me perguntam do porquê de tudo isso, didaticamente explico que não quero interpretar papel de vilão, mas, por preferência pessoal, tenho mais prazer na companhia das criaturas de papel do que nas de carne, osso, sangue e dor.

Abusando da liberdade poética, costumo dizer (para os fins que se fizerem necessários e a quem interessar possa) que foi a literatura que me salvou. Se não houvesse o mundo onírico da ficção e da poesia, provavelmente teria sido arrastado (arrasado) pelo vórtice da insensatez. Ou melhor, seria um desses sujeitos que prestam vassalagem às tabelas de Excel, que reduzem tudo aos percentuais de lucro capitalista e que apostam na pulsão da morte.

Quero distância dessa gente. Também quero ser vacinado. E não estou preocupado com a procedência do medicamento. A proteção da vida está acima dos interesses políticos.

Enquanto o entusiasmo (do grego, in + theos, estar com deus) não acontece, imagino o momento em que todos poderão caminhar pelas ruas e não ter medo.


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