No ano um da pandemia (também conhecido como o ano em que ficamos em casa) me transformei no arroz de festa das lives (literárias, políticas, musicais e econômicas). Basta ver no Facebook ou no Instagram o convite para algum desses encontros que uma luz brilha no meu olhar. Depois de agendar o evento, fico ansioso para ver as performances e as surpresas – que são sortidas: conexões ruins e que “caem” a todo instante, cães, gatos e crianças que surgem inesperadamente na tela, interesses comerciais dissimulados ou explícitos, perguntas calculadas para não pisar nos calos dos convidados e respostas educadas (educadas demais para o mundo real). Todos jogando para a plateia. Uma nova forma de fazer teatro.
Como todo projeto de stalker, sofro uma espécie de síndrome de abstinência quando (ó céus, ó vida, ó azar) preciso passar dois ou três dias sem ter algum tipo de contato virtual com o pessoal que, na falta de palavrão mais qualificado, chamo de digital influencers. São eles que dão cor e sabor aos meus dias e noites de isolamento social.
Creio que – sem querer parecer exagerado – me tornei amigo intimo de algumas dessas pessoas. Elas não sabem disso, provavelmente nunca ficarão sabendo, mas as vi tantas vezes pela tela do computador que parece que somos colegas de infância. Em cada live, vou anotando mentalmente as histórias de fulano, as dificuldades de sicrano, o enredo do novo romance de beltrano. É causo pra mais de metro, como dizia célebre filósofo dos tempos de antigamente – aquele que ficava imaginando o mundo romântico das novelas transmitidas pelas ondas do rádio.
É isso, as lives me remetem ao tempo em que vivi no interior do município, onde uma das poucas formas de comunicação com o mundo exterior eram as transmissões diárias, ao meio dia, do Jornal Falado da Rádio Clube de Lages (Se a Clube não deu, é porque não aconteceu!). Junto com a Ave Maria (às seis da tarde) era horário sagrado. Silêncio absoluto. Sob pena de ser castigado severamente se algum “aviso” ou notícia fosse atrapalhado pela bagunça ou por algum comentário que poderia ser feito em outra ocasião.
A vantagem das lives sobre as transmissões radiofônicas anteriores aos podcasts é que as lives podem ser visitadas post mortem. Ou seja, ficam gravadas em lugar impreciso e não identificado e que, como se fossem zumbis, podem ser libertadas do “outro mundo” quando acessamos o Google, o YouTube, o IGTV ou outros dispositivos menos conhecidos. Não é a mesma coisa, pois parecem reprises ruins de programas de televisão, mas não vejo isso como um impedimento sério quando há coincidência de horários.
(Quase) tudo é permitido quando é divertido, e,
se as musas me perdoarem a indiscreta confissão, quero continuar passeando pelo planeta,
defendendo intransigentemente a procrastinação, flâneur em um palco cenográfico que
glorifica o empreendedorismo (essa mistificação das relações de trabalho). Nestes tempos horrorosos em que estamos
vivendo, mil tragédias todos os dias, o fim do mundo em tecnicolor, diria o filósofo acima citado, assistir algumas lives deve ser entendido como uma forma de proclamar que quero continuar vivo. Como cantou Belchior, um dos reis magos da música
popular brasileira, eu inda sou bem moço pra tanta tristeza.
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