Não sei se existe alguém no mundo que goste de lavar a louça. Talvez os nascidos no signo de virgem, que são pessoas certinhas, adoradores da ordem e da limpeza. Como nasci na outra ponta do zodíaco, tenho entendimento diferente, penso que essa tarefa pode e deve ser adiada o máximo possível, possivelmente para quando não mais existirem pratos e copos limpos.
Com a pandemia, o meu entendimento não mudou, mas tenho exercido o sacrifício com mais assiduidade, uma vez a cada dois dias, o suficiente para não ter a necessidade de desviar o olhar toda vez que vou à cozinha. Poderia culpar minha mãe, que, na infância e adolescência, não me avisou que o futuro estaria repleto de surpresas e que, muitas vezes, precisaria (munido de esponja, detergente e paciência) tentar limpar os detritos do viver. Não quero transferir responsabilidade. Seria uma injustiça com D. Vina, visto que recebi outras lições, talvez mais valiosas, sobre como sobreviver em um mundo hostil e repleto de armadilhas.
Passei parte do dia assistindo – outra vez – Stalker (Dir. Andrei Tarkovski, 1979). Foi uma sessão tumultuada e que se espichou até o início do entardecer. Em casa, diferente da sala de cinema, não me parece sensato aguentar duas horas e quarenta minutos sem algum tipo de interrupção. Sai para buscar chocolate, fazer chá, ir ao banheiro, assistir um pouco de futebol. Talvez, inconscientemente, estivesse criando pretextos para tomar fôlego, assimilar aquela lentidão narrativa, repleta de tensão, e que se multiplica nos momentos em que a câmera se demora no rosto dos personagens, forma brutal de mostrar a melancolia e a tristeza.
O que isso tem a ver com a louça suja? Tudo. Ou nada. A escolha é do freguês. Fique à vontade!
Depois do filme, precisei encontrar uma atividade terapêutica que me afastasse da depressão. Pode parecer maluco (e talvez seja), naquele instante senti a falta de ver gente, de abraçar as pessoas de quem gosto (e que não são muitas!), beber cerveja, jogar conversa fora. Na ausência dessas atividades – e que são essenciais –, fui lavar a louça. Não era muita coisa: três pratos, dois copos, duas xícaras e meia dúzia de talheres.
Um pouco d’água quente ajuda muito. Inclusive para que o pensamento consiga voar para lugares outros, longe da filosofia da miséria e, claro, da miséria da filosofia que emoldura esses dias tumultuados pelas ameaças da indesejada das gentes (na expressão lírica do Manuel Bandeira – que provavelmente nunca reclamou de ter que lavar a louça).
Amanhã é outro dia. Talvez repleto de esperança. Por isso se torna necessário usar máscaras e álcool gel, tomar distâncias, superar o medo – ao mesmo tempo, ignorar a sensação de que o afeto está escorrendo pelo ralo da pia.
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Stalker foi adaptado (mas não muito) do
romance de ficção científica dos irmãos Arkady e Boris Strugátski, Piquenique
na Estrada (São Paulo: Aleph, 2017). O roteiro do filme também é assinado pelos irmãos Strugátski.
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